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Document 62015CJ0215

Acórdão do Tribunal de Justiça (Quarta Secção) de 21 de outubro de 2015.
Vasilka Ivanova Gogova contra Ilia Dimitrov Iliev.
Pedido de decisão prejudicial apresentado pelo Varhoven kasatsionen sad.
Reenvio prejudicial — Cooperação judiciária em matéria civil — Competência, reconhecimento e execução das decisões em matéria matrimonial e de responsabilidade parental — Regulamento (CE) n.° 2201/2003 — Âmbito de aplicação — Artigo 1.°, n.° 1, alínea b) — Atribuição, exercício, delegação, limitação ou cessação da responsabilidade parental — Artigo 2.° — Conceito de ‘responsabilidade parenta — Litígio entre os progenitores relativo à viagem do seu filho e à emissão do seu passaporte — Extensão da competência — Artigo 12.° — Requisitos — Aceitação da competência dos órgãos jurisdicionais onde o processo foi instaurado — Não comparência do demandado — Não contestação da competência pelo mandatário do demandado designado oficiosamente pelos órgãos jurisdicionais onde o processo foi instaurado.
Processo C-215/15.

Court reports – general

ECLI identifier: ECLI:EU:C:2015:710

ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Quarta Secção)

21 de outubro de 2015 ( * )

«Reenvio prejudicial — Cooperação judiciária em matéria civil — Competência, reconhecimento e execução das decisões em matéria matrimonial e de responsabilidade parental — Regulamento (CE) n.o 2201/2003 — Âmbito de aplicação — Artigo 1.o, n.o 1, alínea b) — Atribuição, exercício, delegação, limitação ou cessação da responsabilidade parental — Artigo 2.o — Conceito de ‘responsabilidade parental’ — Litígio entre os progenitores relativo à viagem do seu filho e à emissão do seu passaporte — Extensão da competência — Artigo 12.o — Requisitos — Aceitação da competência dos órgãos jurisdicionais onde o processo foi instaurado — Não comparência do demandado — Não contestação da competência pelo mandatário do demandado designado oficiosamente pelos órgãos jurisdicionais onde o processo foi instaurado»

No processo C‑215/15,

que tem por objeto um pedido de decisão prejudicial apresentado, nos termos do artigo 267.o TFUE, pelo Varhoven kasatsionen sad (Supremo Tribunal de Cassação, Bulgária), por decisão de 11 de maio de 2015, que deu entrada no Tribunal de Justiça no mesmo dia, no processo

Vasilka Ivanova Gogova

contra

Ilia Dimitrov Iliev,

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Quarta Secção),

composto por: L. Bay Larsen, presidente da Terceira Secção, exercendo funções de presidente da Quarta Secção, J. Malenovský, M. Safjan, A. Prechal e K. Jürimäe (relatora), juízes,

advogado‑geral: P. Mengozzi,

secretário: I. Illéssy, administrador,

vista a decisão do presidente do Tribunal de Justiça, de 3 de julho de 2015, de submeter o presente processo à tramitação acelerada prevista no artigo 23.o‑A do Estatuto do Tribunal de Justiça da União Europeia e no artigo 105.o, n.o 1, do Regulamento de Processo do Tribunal de Justiça,

vistos os autos e após a audiência de 9 de setembro de 2015,

vistas as observações apresentadas:

em representação do Governo checo, por J. Vláčil, na qualidade de agente,

em representação do Governo espanhol, por M. A. Sampol Pucurull, na qualidade de agente,

em representação da Comissão Europeia, por S. Petrova e M. Wilderspin, na qualidade de agentes,

ouvido o advogado‑geral,

profere o presente

Acórdão

1

O pedido de decisão prejudicial tem objeto a interpretação dos artigos 1.°, n.o 1, alínea b), 2.°, n.o 7, 8.°, n.o 1, e 12.°, n.o 1, alínea b), do Regulamento (CE) n.o 2201/2003 do Conselho, de 27 de novembro de 2003, relativo à competência, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria matrimonial e matéria de responsabilidade parental e que revoga o Regulamento (CE) n.o 1347/2000 (JO L 338, p. 1).

2

Este pedido foi apresentado no âmbito de um litígio que opõe V. Gogova a I. Iliev a respeito da renovação do passaporte do filho de ambos.

Quadro jurídico

Direito da União

3

Os considerandos 5 e 12 do Regulamento n.o 2201/2003 enunciam:

«(5)

A fim de garantir a igualdade de tratamento de todas as crianças, o presente regulamento abrange todas as decisões em matéria de responsabilidade parental, incluindo as medidas de proteção da criança, independentemente da eventual conexão com um processo matrimonial.

[...]

(12)

As regras de competência em matéria de responsabilidade parental do presente regulamento são definidas em função do superior interesse da criança e, em particular, do critério da proximidade. Por conseguinte, a competência deverá ser, em primeiro lugar, atribuída aos tribunais do Estado‑Membro de residência habitual da criança, exceto em determinados casos de mudança da sua residência habitual ou na sequência de um acordo entre os titulares da responsabilidade parental.»

4

O artigo 1.o deste regulamento, intitulado «Âmbito de aplicação», dispõe:

«1.   O presente regulamento é aplicável, independentemente da natureza do tribunal, às matérias civis relativas:

[...]

b)

À atribuição, ao exercício, à delegação, à limitação ou à cessação da responsabilidade parental.

2.   As matérias referidas na alínea b) do n.o 1 dizem, nomeadamente, respeito:

a)

Ao direito de guarda e ao direito de visita;

b)

À tutela, à curatela e a outras instituições análogas;

c)

À designação e às funções da pessoa ou do organismo encarregado de se ocupar da pessoa ou dos bens da criança, e da sua representação ou assistência;

d)

À colocação da criança ao cuidado de uma família de acolhimento ou de uma instituição;

e)

Às medidas de proteção da criança relacionadas com a administração, conservação ou disposição dos seus bens.

3.   O presente regulamento não é aplicável:

a)

Ao estabelecimento ou impugnação da filiação;

b)

Às decisões em matéria de adoção, incluindo as medidas preparatórias, bem como a anulação e a revogação da adoção;

c)

Aos nomes e apelidos da criança;

d)

À emancipação;

e)

Aos alimentos;

f)

Aos fidocomissos («trusts») e sucessões;

g)

Às medidas tomadas na sequência de infrações penais cometidas por crianças.»

5

O artigo 2.o, n.o 7, do referido regulamento define o conceito de «responsabilidade parental» como «o conjunto dos direitos e obrigações conferidos a uma pessoa singular ou coletiva por decisão judicial, por atribuição de pleno direito ou por acordo em vigor relativo à pessoa ou aos bens de uma criança. O termo compreende, nomeadamente, o direito de guarda e o direito de visita».

6

O artigo 8.o do mesmo regulamento, intitulado «Competência geral», tem a seguinte redação:

«1.   Os tribunais de um Estado‑Membro são competentes em matéria de responsabilidade parental relativa a uma criança que resida habitualmente nesse Estado‑Membro à data em que o processo seja instaurado no tribunal.

2.   O n.o 1 aplica‑se sob reserva do disposto [no artigo 12.o].»

7

O artigo 12.o do Regulamento n.o 2201/2003, intitulado «Extensão da competência», dispõe:

«1.   Os tribunais do Estado‑Membro que, por força do artigo 3.o, são competentes para decidir de um pedido de divórcio, de separação ou de anulação do casamento, são competentes para decidir de qualquer questão relativa à responsabilidade parental relacionada com esse pedido quando:

a)

Pelo menos um dos cônjuges exerça a responsabilidade parental em relação à criança;

e

b)

A competência desses tribunais tenha sido aceite, expressamente ou de qualquer outra forma inequívoca pelos cônjuges ou pelos titulares da responsabilidade parental à data em que o processo é instaurado em tribunal, e seja exercida no superior interesse da criança.

[...]

3.   Os tribunais de um Estado‑Membro são igualmente competentes em matéria de responsabilidade parental em processos que não os referidos no n.o 1, quando:

a)

A criança tenha uma ligação particular com esse Estado‑Membro, em especial devido ao facto de um dos titulares da responsabilidade parental ter a sua residência habitual nesse Estado‑Membro ou de a criança ser nacional desse Estado‑Membro;

e

b)

A sua competência tenha sido aceite explicitamente ou de qualquer outra forma inequívoca por todas as partes no processo à data em que o processo é instaurado em tribunal e seja exercida no superior interesse da criança.

[...]»

8

O artigo 16.o deste regulamento, intitulado «Apreciação da ação por um tribunal», prevê:

«1.   Considera‑se que o processo foi instaurado:

a)

Na data de apresentação ao tribunal do ato introdutório da instância, ou ato equivalente, desde que o requerente não tenha posteriormente deixado de tomar as medidas que lhe incumbem para que seja feita a citação ou a notificação ao requerido;

ou

b)

Se o ato tiver de ser citado ou notificado antes de ser apresentado ao tribunal, na data em que é recebido pela autoridade responsável pela citação ou notificação, desde que o requerente não tenha posteriormente deixado de tomar as medidas que lhe incumbem para que o ato seja apresentado a tribunal.»

Direito búlgaro

Lei sobre os documentos de identificação búlgaros

9

O artigo 45.o, n.o 1, da Lei relativa aos documentos de identificação búlgaros (Zakon za balgarskite lichni dokumenti) dispõe que o requerimento de um passaporte para menores deve ser pessoalmente apresentado pelos respetivos progenitores.

10

Em conformidade com o artigo 78.o, n.o 1, da referida lei, conjugado com o artigo 76.o, n.o 9, da mesma lei, o Ministro do Interior ou, sendo caso disso, a pessoa por este autorizada para o efeito, poderá recusar a saída da criança do território da República da Bulgária, quando não for exibida uma autorização escrita para a criança viajar, assinada pelos progenitores e reconhecida notarialmente.

Código da Família

11

O artigo 127.oa do Código da Família (Semeen kodeks) dispõe:

«1.   As questões relacionadas com a viagem de uma criança ao estrangeiro e com a emissão dos documentos de identificação necessários para esse efeito são resolvidas de comum acordo pelos progenitores.

2.   Caso os progenitores não cheguem ao acordo previsto no n.o 1, o litígio será dirimido pelo Rayonen sad (Tribunal de Primeira Instância) do local onde a criança tiver o seu domicílio.

3.   O processo é iniciado mediante requerimento de um dos progenitores. O tribunal ouve o outro progenitor, salvo se este não comparecer sem motivo válido. O tribunal pode obter provas oficiosamente.

[...]»

Código de Processo Civil

12

O artigo 47.o do Código de Processo Civil (Grazhdanski protsesualen kodeks) dispõe:

«1.   Caso seja impossível encontrar o demandado no endereço constante dos autos e encontrar uma pessoa que aceite receber a citação, será afixada uma notificação na porta ou na caixa de correio da pessoa em causa; quando a estas não se tenha acesso, a afixação será feita na porta de entrada do prédio, ou num local próximo visível. Quando se tenha acesso à carta de correio, será também aí deixada uma notificação.

2.   A notificação em questão refere que o processo deu entrada na Secretaria do tribunal, quando a citação seja feita por um funcionário do tribunal ou por um oficial de justiça, ou que foi apresentado na Secretaria do município, quando seja feita por um funcionário municipal, e que pode aí ser levantado dentro do prazo de duas semanas a contar da data da afixação da notificação.

3.   Se o demandado não levantar os documentos, o tribunal notifica o demandante para fornecer informações sobre o domicílio daquele, salvo nos casos previstos nos artigos 40.°, n.o 2, e 41.°, n.o 1, em que a notificação é junta aos autos. Se o domicílio indicado não corresponder ao domicílio habitual ou atual da parte, o tribunal determina a realização da citação, nos termos dos n.os 1 e 2, no domicílio atual ou habitual.

4.   Se o funcionário verificar que o demandado não reside no domicílio indicado, o tribunal notifica o demandante para apresentar informações sobre o domicílio daquele, sem prejuízo da afixação da nota de citação nos termos do n.o 1.

5.   A citação considera‑se realizada após o decurso do prazo para o levantamento na Secretaria do tribunal ou do município.

6.   Ao considerar a citação regularmente efetuada, o tribunal ordena a sua incorporação nos autos e designa um mandatário ao demandado, a expensas do demandante.»

Litígio no processo principal e questões prejudiciais

13

Resulta da decisão de reenvio que V. Gogova e I. Iliev têm um filho de 10 anos de idade, à data dos factos do processo principal. O filho, de nacionalidade búlgara, reside com a mãe em Milão (Itália). Ambos os progenitores são cidadãos búlgaros, que vivem separados. I. Iliev reside igualmente em Itália.

14

V. Gogova quis renovar o passaporte do seu filho, por este documento ter caducado em 5 de abril de 2012, especialmente, para viajar com ele para a Bulgária.

15

Segundo o direito búlgaro, a decisão relativa à viagem de um filho menor e à obtenção de um passaporte em seu nome é tomada de comum acordo pelos progenitores. Por outro lado, o pedido do passaporte para esse menor deve ser feito pelos seus dois progenitores às autoridades administrativas competentes.

16

Uma vez que I. Iliev não cooperou com a recorrente no processo principal, para a emissão de um novo passaporte em nome do seu filho, V. Gogova apresentou um pedido ao Rayonen sad — Petrich (Tribunal de Primeira Instância de Petrich, Bulgária), para que este órgão jurisdicional decidisse o desacordo existente entre ela e I. Iliev, relativo à possibilidade de o seu filho viajar para fora do território nacional e à emissão de um novo passaporte.

17

Na impossibilidade de notificar o requerimento introdutório da instância a I. Iliev, visto este não se encontrar no seu domicílio declarado, o referido tribunal designou um mandatário ad litem para o representar, nos termos do artigo 47.o, n.o 6, do Código de Processo Civil. Esse mandatário não contestou a competência dos tribunais búlgaros e declarou que o litígio devia ser resolvido em função do interesse da criança.

18

Por despacho de 10 de novembro de 2014, o Rayonen sad — Petrich (Tribunal de Primeira Instância de Petrich) declarou que o pedido de V. Gogova era abrangido pelo artigo 127.oa do Código da Família e dizia respeito à responsabilidade parental relativa a uma criança, na aceção do artigo 8.o do Regulamento n.o 2201/2003. Verificando que a criança em causa residia habitualmente em Itália, esse tribunal declarou‑se incompetente para conhecer desse pedido e extinguiu a instância.

19

V. Gogova interpôs recurso dessa decisão no Okrazhen sad — Blagoevgrad (Tribunal Regional de Blagoevgrad, Bulgária). Este tribunal, por um lado, confirmou o referido despacho e, por outro, considerou que não havia «extensão da competência» dos tribunais búlgaros, na aceção do artigo 12.o, n.o 1, alínea b), do Regulamento n.o 2201/2003. Com efeito, segundo o referido tribunal, embora I. Iliev não tenha suscitado a incompetência desses tribunais, só participou no processo por intermédio do mandatário designado oficiosamente devido à sua ausência.

20

A demandante no processo principal interpôs então recurso para o Varhoven kasatsionen sad (Supremo Tribunal de Cassação). Este órgão jurisdicional considerou que a solução deste recurso depende, em primeiro lugar, da questão de saber se o processo judicial previsto no artigo 127.oa, n.o 2, do Código da Família, que permite suprir, por decisão judicial, a falta de consentimento de um dos progenitores para a viagem para fora do território nacional do seu filho e a emissão de um passaporte em seu nome, é abrangido pelo Regulamento n.o 2201/2003, de modo que a competência dos tribunais deveria ser determinada com base nas disposições deste regulamento. Em especial, coloca a questão de saber se esse processo diz respeito à «responsabilidade parental», na aceção do artigo 2.o, n.o 7, do referido regulamento. Segundo esse órgão jurisdicional, neste âmbito, é necessário também determinar se o mesmo regulamento é aplicável a este processo, dado que, em conformidade com o direito búlgaro, a decisão judicial proferida no âmbito do referido processo deve ser apresentada às autoridades administrativas búlgaras, a fim de a criança em causa ser autorizada a viajar para fora do território nacional ou de lhe ser emitido um passaporte.

21

Em segundo lugar, o órgão jurisdicional de reenvio tem dúvidas quanto à questão de saber se, no caso em apreço, a competência dos órgãos jurisdicionais búlgaros pode ser baseada no artigo 12.o, n.o 1, alínea b), do Regulamento n.o 2201/2003, devido ao facto de o mandatário designado por esses órgãos jurisdicionais para representar I. Iliev não ter contestado a sua competência para conhecer do litígio no processo principal.

22

Nestas circunstâncias, o Varhoven kasatsionen sad (Supremo Tribunal de Cassação) decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça as seguintes questões prejudiciais:

«1)

A possibilidade, prevista na lei, de os tribunais cíveis dirimirem um litígio entre os progenitores relativo à viagem para o estrangeiro de um filho de ambos e à emissão de documentos de identificação, sendo que o direito substantivo aplicável prevê o exercício conjunto destes direitos parentais em relação ao filho, constitui uma matéria relativa à ‘atribuição, ao exercício, à delegação, à limitação ou à cessação da responsabilidade parental’, na aceção do artigo 1.o, n.o 1, alínea b), conjugado com o artigo 2.o, n.o 7, do Regulamento (CE) n.o 2201/2003 do Conselho, de 27 de novembro de 2003, relativo à competência, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria matrimonial e em matéria de responsabilidade parental, à qual é aplicável o artigo 8.o, n.o 1, do mesmo regulamento?

2)

Verificam‑se os fundamentos da competência internacional em processos cíveis relativos à responsabilidade parental quando a decisão judicial supre um pressuposto legal necessário para um processo administrativo relativo à criança e o direito aplicável impõe que esse processo decorra num determinado Estado‑Membro da União Europeia?

3)

Deve entender‑se que há uma extensão da competência, nos termos do artigo 12.o, n.o 1, alínea b), do Regulamento n.o 2201/2003, se o mandatário do recorrido não impugnar a competência do tribunal, quando esse mandatário não tiver sido constituído pelo recorrido, mas nomeado pelo tribunal, devido à dificuldade em citar o recorrido para comparecer pessoalmente ou constituir mandatário judicial?»

Tramitação do processo no Tribunal de Justiça

23

A pedido do órgão jurisdicional de reenvio, a secção designada examinou a necessidade de submeter o presente processo à tramitação prejudicial urgente prevista no artigo 107.o do Regulamento de Processo do Tribunal de Justiça. Ouvido o advogado‑geral, a referida secção decidiu deferir esse pedido.

24

Pelo seu despacho Gogova (C‑215/15, EU:C:2015:466), o presidente do Tribunal de Justiça decidiu submeter o presente processo à tramitação acelerada prevista no artigo 23.o‑A do Estatuto do Tribunal de Justiça da União Europeia e no artigo 105.o, n.o 1, do Regulamento de Processo.

Quanto às questões prejudiciais

Quanto à primeira e segunda questões

25

Através da primeira e segunda questões, que devem ser apreciadas conjuntamente, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se a ação pela qual um dos progenitores pede ao juiz que supra a falta de consentimento do outro progenitor para que o seu filho viaje para fora do território do seu Estado‑Membro de residência e para a emissão de um passaporte em nome desse filho é abrangida pelo âmbito de aplicação material do Regulamento n.o 2201/2003, e isto, mesmo que a decisão proferida no fim dessa ação deva ser tomada em consideração pelas autoridades do Estado‑Membro da nacionalidade do menor, no âmbito do processo administrativo relativo à emissão desse passaporte.

26

Quanto ao âmbito de aplicação material do Regulamento n.o 2201/2003, resulta do artigo 1.o, n.o 1, alínea b), deste regulamento que este é aplicável, independentemente da natureza do tribunal, às matérias civis relativas, nomeadamente, à atribuição, ao exercício, à delegação, à limitação ou à cessação da responsabilidade parental. Neste âmbito, o conceito de «matérias civis» deve ser concebido não de modo estrito mas como um conceito autónomo de direito da União que abrange, em especial, todos os pedidos, medidas ou decisões em matéria de «responsabilidade parental», na aceção do referido regulamento, em conformidade com o objetivo recordado no seu considerando 5 (v., neste sentido, acórdão C, C‑435/06, EU:C:2007:714, n.os 46 a 51).

27

A este respeito, o conceito de «responsabilidade parental» é objeto de uma definição lata, no artigo 2.o, n.o 7, do Regulamento n.o 2201/2003, no sentido de que compreende o conjunto dos direitos e das obrigações conferidos a uma pessoa singular ou a uma pessoa coletiva, por decisão judicial, por atribuição de pleno direito ou por um acordo em vigor relativo à pessoa ou aos bens de uma criança (acórdãos C, C‑435/06, EU:C:2007:714, n.o 49, e C., C‑92/12 PPU, EU:C:2012:255, n.o 59). Por outro lado, embora o artigo 1.o, n.o 2, deste regulamento contenha uma enumeração das matérias cobertas pelo referido regulamento a título da «responsabilidade parental», essa enumeração não é taxativa, mas tem caráter indicativo, como demonstra a utilização do termo «nomeadamente» (acórdãos C, C‑435/06, EU:C:2007:714, n.o 30, e C., C‑92/12 PPU, EU:C:2012:255, n.o 63).

28

Para determinar se um pedido é abrangido pelo âmbito de aplicação do Regulamento n.o 2201/2003, há que atender ao objeto do pedido [v., por analogia, quanto ao conceito de «estado e […] capacidade das pessoas singulares», na aceção do artigo 1.o, n.o 2, do Regulamento (CE) n.o 44/2001 do Conselho, de 22 de dezembro de 2000, relativo à competência judiciária, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria civil e comercial (JO 2001, L 12, p. 1), acórdão Schneider, C‑386/12, EU:C:2013:633, n.os 29 e 30, e, quanto ao conceito de «segurança social», na aceção dessa disposição, acórdão Baten, C‑271/00, EU:C:2002:656, n.os 46 e 47].

29

No que diz respeito a uma ação como a do processo principal, resulta da decisão de reenvio que, no âmbito dessa ação, o tribunal se deve pronunciar sobre a necessidade de a criança em causa obter um passaporte e sobre o direito de o progenitor requerente apresentar o requerimento referente a esse passaporte e viajar para o estrangeiro com o filho, sem o consentimento do outro progenitor. Assim, essa ação tem por objeto o exercício da «responsabilidade parental» em relação à referida criança, na aceção do artigo 1.o, n.o 1, alínea b), do Regulamento n.o 2201/2003, interpretado em conjugação com o artigo 2.o, n.o 7, do mesmo regulamento.

30

Além disso, há que declarar que uma ação como a que está em causa no processo principal não é abrangida por nenhuma das exceções limitativamente enumeradas no artigo 1.o, n.o 3, do mesmo regulamento.

31

Por conseguinte, a ação é abrangida pelo âmbito de aplicação do Regulamento n.o 2201/2003.

32

Esta conclusão não é posta em causa pelo simples facto de um pedido como o do processo principal dizer respeito a uma decisão específica relativa a uma criança e não a todas as modalidades de exercício da responsabilidade parental. Com efeito, como foi recordado nos n.os 26 e 27 do presente acórdão, esse mesmo regulamento aplica‑se a todas as decisões na matéria, quer digam respeito ao aspeto específico dessa mesma responsabilidade quer determinem de maneira geral o exercício dessa responsabilidade.

33

Do mesmo modo, o facto de a decisão proferida no fim do referido pedido dever ser tomada em consideração pelas autoridades do Estado‑Membro da nacionalidade da criança em causa, no caso concreto a República da Bulgária, no quadro do processo administrativo de emissão de um passaporte em nome dessa criança, não pode conduzir a uma interpretação diferente do Regulamento n.o 2201/2003.

34

A este respeito, basta referir que, de qualquer modo, um processo como o que está em causa no processo principal não implica diretamente a emissão de um passaporte, mas tem por único efeito permitir a uma das pessoas que exercem a responsabilidade parental em relação à criança em causa apresentar um pedido de passaporte em nome dessa criança, sem a participação, a presença ou o acordo da outra pessoa que exerce essa responsabilidade, e isto, sem prejuízo dos outros requisitos previstos no direito búlgaro para a emissão de tal documento.

35

Tendo em conta as considerações precedentes, há que responder à primeira e segunda questões que a ação pela qual um dos progenitores pede ao tribunal que supra a falta de consentimento do outro progenitor para o seu filho viajar para fora do Estado‑Membro da sua residência e para a emissão de um passaporte em nome desse filho é abrangida pelo âmbito de aplicação material do Regulamento n.o 2201/2003, e isto, mesmo que a decisão proferida no fim dessa ação deva ser tomada em consideração pelas autoridades do Estado‑Membro da nacionalidade da referida criança, no âmbito do processo administrativo relativo à emissão desse passaporte.

Quanto à terceira questão

36

A terceira questão tem por objeto a interpretação do artigo 12.o, n.o 1, do Regulamento n.o 2201/2003. Essa disposição prevê que, sob determinadas condições, os tribunais do Estado‑Membro onde foi submetido o pedido de divórcio, de separação ou de anulação do casamento são competentes para decidir de qualquer questão relativa à responsabilidade parental relacionada com esse pedido.

37

Ora, não decorre da decisão de reenvio nem das observações apresentadas ao Tribunal de Justiça que, no caso em apreço, tenha sido submetido ao órgão jurisdicional de reenvio um pedido de natureza matrimonial.

38

Em contrapartida, o artigo 12.o, n.o 3, do Regulamento n.o 2201/2003 prevê uma regra de extensão da competência que permite aos tribunais de um Estado‑Membro diferente do da residência habitual da criança conhecerem dos pedidos em matéria de responsabilidade parental relativa a essa criança, e isto, mesmo que não esteja pendente nenhum processo matrimonial nesses tribunais (v., neste sentido, acórdão L, C‑656/13, EU:C:2014:2364, n.os 45 e 52).

39

Por conseguinte, a terceira questão deve ser compreendida como destinada a determinar, em substância, se o artigo 12.o, n.o 3, alínea b), do Regulamento n.o 2201/2003 deve ser interpretado no sentido de que a competência dos tribunais a quem foi apresentado um pedido em matéria de responsabilidade parental pode ser considerada como tendo sido «aceite explicitamente ou de qualquer outra forma inequívoca por todas as partes no processo», na aceção dessa disposição, apenas pelo facto de o mandatário ad litem que representa o demandado, designado oficiosamente por esses tribunais devido à impossibilidade de notificar a este último o requerimento introdutório da instância, não ter suscitado a incompetência dos referidos tribunais.

40

Segundo o teor do artigo 12.o, n.o 3, alínea b), do Regulamento n.o 2201/2003, interpretado à luz do seu artigo 16.o, os tribunais de um Estado‑Membro podem basear a sua competência nessa primeira disposição, na condição de ser provada a existência de um acordo explícito ou, pelo menos, inequívoco sobre essa competência, entre todas as partes no processo, o mais tardar, na data em que o ato introdutório da instância ou um ato equivalente foi apresentado no tribunal escolhido (v., neste sentido, acórdão L, C‑656/13, EU:C:2014:2364, n.o 56).

41

Por outro lado, resulta do considerando 12 do Regulamento n.o 2201/2003 que a competência prevista no artigo 12.o, n.o 3, deste regulamento é uma exceção ao critério de proximidade, segundo o qual compete, em primeiro lugar, aos tribunais do Estado‑Membro de residência habitual da criança conhecer das ações em matéria de responsabilidade parental relativas a essa criança, de que o artigo 8.o, n.o 1, desse regulamento constitui a expressão. Como salientou o advogado‑geral no n.o 64 da sua tomada de posição, essa exceção visa reconhecer uma certa autonomia às partes, em matéria de responsabilidade parental. O requisito relativo ao caráter inequívoco da aceitação da competência dos tribunais onde as ações foram instauradas por todas as partes no processo deve, portanto, ser interpretado de forma estrita.

42

A este respeito, convém salientar que, por um lado, essa aceitação pressupõe, a mínima, que o demandado tenha conhecimento do processo instaurado nesses tribunais. Com efeito, se esse conhecimento não puder equivaler, só por si, à aceitação da competência dos órgãos jurisdicionais onde foram instauradas as ações, não se pode considerar que, de qualquer forma, o demandado revel, a quem o requerimento introdutório da instância não foi notificado e que ignora o processo instaurado, aceita essa competência (v., por analogia, quanto ao artigo 24.o do Regulamento n.o 44/2001, acórdão A, C‑112/13, EU:C:2014:2195, n.o 54).

43

Por outro lado, a vontade do demandado no processo principal não pode ser deduzida do comportamento de um mandatário ad litem designado pelos referidos tribunais devido à ausência desse demandado. Dado que esse mandatário não teve contactos com o demandado, não pôde obter deste último as informações necessárias para aceitar ou contestar a competência desses mesmos tribunais com conhecimento de causa (v., nesse sentido, acórdão A, C‑112/13, EU:C:2014:2195, n.o 55).

44

Daqui se conclui que, numa situação como a que está em causa no processo principal, não se pode considerar que a competência dos tribunais onde foi instaurada a ação tenha sido «aceite explicitamente ou de qualquer outra forma inequívoca por todas as partes no processo», na aceção do artigo 12.o, n.o 3, do Regulamento n.o 2201/2003.

45

Esta interpretação não pode ser posta em causa pelo direito de acesso à justiça ou pelos princípios da segurança jurídica e do efeito útil do Regulamento n.o 2201/2003, contrariamente ao que sustentou o Governo espanhol no Tribunal de Justiça. A este respeito, esse governo alegou, em substância, que a impossibilidade de a demandante no processo principal obter uma decisão definitiva sobre o seu pedido, devido às dificuldades de notificação do processo ao demandado no processo principal, origina uma denegação de justiça, contrária ao direito e aos princípios acima referidos.

46

Ora, a interpretação feita no n.o 44 do presente acórdão não priva um demandante, numa situação como a do processo principal, da possibilidade de, se for caso disso, obter uma decisão judicial proferida à revelia nos tribunais do Estado‑Membro da residência habitual da criança em causa, competentes nos termos do artigo 8.o do Regulamento n.o 2201/2003. Esta interpretação não conduz, por conseguinte, a uma denegação de justiça.

47

Por conseguinte, há que responder à terceira questão que o artigo 12.o, n.o 3, alínea b), do Regulamento n.o 2201/2003 deve ser interpretado no sentido de que não se pode considerar que a competência dos tribunais onde foi apresentado um pedido em matéria de responsabilidade parental tenha sido «aceite explicitamente ou de qualquer outra forma inequívoca por todas as partes no processo», na aceção desta disposição, pela simples razão de o mandatário ad litem que representa o demandado, designado oficiosamente por esses tribunais devido à impossibilidade de notificar a este último o requerimento introdutório da instância, não ter suscitado a incompetência dos referidos tribunais.

Quanto às despesas

48

Revestindo o processo, quanto às partes na causa principal, a natureza de incidente suscitado perante o órgão jurisdicional de reenvio, compete a este decidir quanto às despesas. As despesas efetuadas pelas outras partes para a apresentação de observações ao Tribunal de Justiça não são reembolsáveis.

 

Pelos fundamentos expostos, o Tribunal de Justiça (Quarta Secção) declara:

 

1)

A ação pela qual um dos progenitores pede ao juiz que supra a falta de consentimento do outro progenitor para o seu filho viajar para fora do Estado‑Membro da sua residência e para a emissão de um passaporte em nome desse filho é abrangida pelo âmbito de aplicação material do Regulamento (CE) n.o 2201/2003 do Conselho, de 27 de novembro de 2003, relativo à competência, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria matrimonial e matéria de responsabilidade parental e que revoga o Regulamento (CE) n.o 1347/2000, e isto, mesmo que a decisão proferida no fim dessa ação deva ser tomada em consideração pelas autoridades do Estado‑Membro da nacionalidade da referida criança, no âmbito do processo administrativo relativo à emissão desse passaporte.

 

2)

O artigo 12.o, n.o 3, alínea b), do Regulamento n.o 2201/2003 deve ser interpretado no sentido de que não se pode considerar que a competência dos tribunais onde foi apresentado um pedido em matéria de responsabilidade parental tenha sido «aceite explicitamente ou de qualquer outra forma inequívoca por todas as partes no processo», na aceção desta disposição, pela simples razão de o mandatário ad litem que representa o demandado, designado oficiosamente por esses tribunais devido à impossibilidade de notificar a este último o requerimento introdutório da instância, não ter suscitado a incompetência dos referidos tribunais.

 

Assinaturas


( * )   Língua do processo: búlgaro.

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