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Document 61988CJ0320

Acórdão do Tribunal (Sexta Secção) de 8 de Fevereiro de 1990.
Staatssecretaris van Financiën contra Shipping and Forwarding Enterprise Safe BV.
Pedido de decisão prejudicial: Hoge Raad - Países Baixos.
Interpretação do n.º 1 do artigo 5.º da sexta directiva - Entrega de um bem imóvel - Transferência económica do bem.
Processo C-320/88.

Colectânea de Jurisprudência 1990 I-00285

ECLI identifier: ECLI:EU:C:1990:61

RELATÓRIO PARA AUDIÊNCIA

apresentado no processo C-320/88 ( *1 )

I — A matéria de facto

A — A legislação nacional e comunitária

1.

A Wet op de omzetbelasting de 1968 (lei neerlandesa sobre o imposto sobre o volume de negocios, de ora em diante «lei») prevê que a noção de entrega de um bem (móvel ou imóvel) engloba, designadamente:

a transferência da propriedade do bem por força de um contrato [alínea a) do n.o 1 do artigo 3.o da lei];

a transmissão e a transferência de um bem, tendo por resultado esse bem abandonar o património do empresário em questão [alínea e) do n.o 1 do artigo 3.o da lei]. Nos termos do n.o 3 do artigo 3.o da lei,

«quando sejam concluídos por várias pessoas contratos que contenham uma obrigação de entrega de um bem, que seguidamente seja entregue directamente pela primeira pessoa ou último comprador, o bem será considerado como tendo sido entregue por cada uma dessas pessoas».

2.

O regime da tributação da transferência de um imóvel consiste, em substância, em que a entrega de um bem imóvel antigo ser isenta e a entrega de um imóvel novo estar sujeita ao imposto. Assim, por força do artigo 11.o da lei, a entrega de um edifício já utilizado, de um terreno vago, bem como a inscrição e a transmissão de direitos reais sobre um bem imóvel são isentos de IVA, enquanto que a entrega de um terreno para construção, de um bem imóvel (quando ocorra antes de dois anos após a sua primeira ocupação) e a entrega de trabalhos imobiliários estão sujeitos a IVA.

A lei foi alterada em 1979. As alterações tiveram por objectivo adaptar a legislação neerlandesa sobre o imposto sobre o volume de negocios à sexta Directiva 77/388/CEE do Conselho, de 17 de Maio de 1977, relativa à harmonização das legislações dos Estados-membros respeitantes aos impostos sobre o volume de negócios — Sistema comum do imposto sobre o valor acrescentado: matéria colectável uniforme (JO L 145, p. 1; EE 09 Fl p. 54).

3.

Nos termos do n.o 1 do artigo 5.o da sexta directiva,

«por ‘entrega de um bem’ entende-se a transferência do poder de dispor de um bem corpòreo, como proprietário».

B — Antecedentes do litígio tia cansa principal

4.

Por escritura pública de 19 de Junho de 1979, intitulada «transferência econômica», a Shipping and Forwarding Enterprise Safe BV (Safe Rekencentrum BV, de ora em diante «Safe»), estabelecida em Hillegom (Países Baixos), cedeu à Kats Bouwgroep NV (de ora em diante «Kats»), com sede em Leeuwarden (Países Baixos), um imóvel compreeendendo uma vivenda com dependências pela quantia de 2250000 HFL.

O contrato celebrado nessa ocasião entre Safe e Kats estipula, designadamente:

«1.

O vendedor obriga-se a transmitir ao comprador o direito de propriedade que, sem prejuízo da eventual constituição de uma ou várias hipotecas sobre a coisa vendida ou da inscrição hipotecária a favor do adquirente:

a)

é incondicional e não está sujeito a redução, resolução, ou qualquer tipo de anulação;

b)

nao está onerado com hipotecas, penhoras ou outros direitos reais;

c)

não está onerado com inscrições hipotecárias, de penhora, etc.

...

5.

Todos os rendimentos e encargos da coisa vendida ficam, a partir desta data, por conta do comprador.

6.

A partir desta data o comprador suportará os riscos relativos à coisa vendida.

7.

Todas as despesas notariais relativas ao presente contrato de compra e venda bem como à entrega efectiva e à transmissão jurídica da coisa vendida serão suportadas pelo comprador; os direitos de transmissão eventualmente devidos sobre a transmissão jurídica da coisa vendida ficam a cargo do comprador.

...

D —

Dado que a transmissão jurídica da coisa vendida se efectuará por ordem do comprador, mas o mais tardar em 31 de Dezembro de 1982, o vendedor e o comprador acordam, além disso, no seguinte:

1)

ao primeiro pedido do comprador, o vendedor obriga-se a entregar-lhe a coisa vendida,

2)

a transmissão jurídica da coisa vendida efectuar-se-á nas condições e no momento ou momentos fixados pelo comprador, tendo em conta as disposições acordadas na presente escritura,

3)

a exploração da coisa vendida é efectuada, a partir desta data, por conta e risco do comprador,

o qual, desde que respeite as disposições acordadas entre o vendedor e o comprador na presente escritura, tem a partir deste momento capacidade para praticar todos os actos (jurídicos) relativos à coisa vendida. A partir desta data o vendedor abster-se-á, salvo a pedido do comprador, de praticar qualquer acto (jurídico) relativamente à coisa vendida.

E —

A Safe confere pelo presente acto um mandato irrevogável — com poderes para subestabelecer — ao comprador (Kats) para agir por conta ou em nome do vendedor (a interessada), a fim de:

1)

entregar a coisa vendida, como mencionado no ponto D anterior;

2)

onerar a coisa vendida, ou uma parte desta última que o comprador deseje, inclusive em favor do próprio comprador, de um direito de hipoteca, nos montantes que desejar e determinar e nas condições que aprovar, sejam quais forem;

3)

respeitar em geral as obrigações assumidas pelo vendedor relativamente ao comprador

O mandato acima mencionado é conferido exclusivamente no interesse do comprador e faz parte integrante do presente contrato de compra e venda, contrato que não teria sido celebrado não havendo este mandato e se o mesmo não tivesse caracter irrevogável; o mandato tem efeitos externos, de modo que a sua revogação é desprovida de todo e qualquer efeito jurídico.»

5.

Em 1980, a Kats fez demolir a vivenda e as suas dependências e preparou o terreno para construção. Em 11 de Outubro de 1983, os administradores da falência da Kats celebraram com a sociedade Abreka BV, de Amesterdão, um contrato perante notário pelo qual cediam à Abreka, pelo preço de 425000 HFL, acrescido do respectivo imposto sobre o volume de negócios (ou seja, 76500 HFL), todos os direitos decorrentes para a Kats do contrato intitulado «tranferência económica» celebrado em 1979 com a Safe. Para satisfazer as suas obrigações, a Safe transferiu directamente para a Abreka a propriedade jurídica do bem imóvel em 11 de Agosto de 1983.

6.

Foi imposta à Safe, para o ano de 1979, uma correcção da liquidação do imposto sobre o volume de negócios. A liquidação adicional diz respeito à entrega que, segundo o inspector de finanças, em aplicação do n.o 3 do artigo 3.o da lei, foi feita pela Safe à Kats, em 11 de Agosto de 1983, no momento em que ocorreu a transmissão jurídica do bem. O pagamento de 2250000 HFL que teve lugar em 1979 apenas poderia ser considerado um adiantamento.

A Safe apresentou reclamação contra a liquidação adicional ao inspector de finanças, que a indeferiu. Contra essa decisão de indeferimento, a Safe interpôs recurso no Gerechtshof de Haia, que anulou a decisão do inspector e a liquidação adicional. O Staatssecretaris van Financiën interpôs recurso de cassação contra essa decisão.

C — A questão prejudicial

7.

Entendendo que o litígio suscita questões de interpretação de uma disposição de direito comunitário, o Hoge Raad dos Países Baixos, por acórdão de 19 de Outubro de 1988, suspendeu a instância e pediu ao Tribunal de Justiça, nos termos do artigo 177.o do Tratado CEE, que se pronuncie, a título prejudicial, sobre as seguintes questões prejudiciais:

«1)

O número 1 do artigo 5.o da sexta directiva deve ser interpretado no sentido de que só existe entrega de um bem, na acepção da referida disposição, se houver transmissão da propriedade jurídica do bem em questão?

2)

Em caso de resposta negativa à primeira questão, pode-se igualmente falar de entrega de um bem, na acepção acima referida, quando o proprietário jurídico do bem em questão:

assumiu contratualmente em relação à outra parte compromissos por força dos quais as alterações de valor e os rendimentos e encargos do bem correm a partir de então por conta e risco desse co-contratante;

se comprometeu por força do referido contrato a transmitir ao seu co-contratante a propriedade jurídica do bem num momento futuro;

conferiu pelo referido contrato mandato irrevogável ao seu co-contratante para praticar todos os actos relativos a esta transmissão;

colocou efectivamente o bem à disposição do seu co-contratante, em conformidade com o referido contrato?»

8.

O Hoge Raad entende que, se o n.o 1 do artigo 5.o da sexta directiva visa certas formas de transferência de um bem imóvel diferentes da transmissão da propriedade jurídica, então será necessário admitir que, tendo em conta a conformidade entre o sentido da noção de entrega utilizada na lei e dessa noção tal como consta da sexta directiva, o n.o 1 do artigo 3.o da lei visa igualmente essas outras formas de transferência. O órgão jurisdicional nacional acrescenta que, segundo as disposições do n.o 1 do artigo 671.o do Código Civil neerlandês, a propriedade jurídica de um bem imóvel é transmitida pela transcrição do acto em causa nos registos públicos destinados a esse efeito e que, enquanto essa inscrição não for efectuada, a propriedade jurídica do bem imóvel continua a ser daquele que até então era o proprietário, mesmo quando este tenha transmitido a propriedade económica para outra pessoa.

O Hoge Raad entende, por conseguinte, que a questão é saber se apenas a transmissão da propriedade jurídica de um bem pode ser qualificada de «entrega de um bem», na acepção do n.o 1 do artigo 5.o da sexta directiva, ou se também se tratará dessa entrega cada vez que, ou em certos casos em que, apenas é transmitida a propriedade económica do bem.

II — Tramitação processual

9.

O acórdão de reenvio foi registado na Secretaria do Tribunal em 3 de Novembro de 1988.

10.

Em conformidade com o disposto no artigo 20.o do protocolo relativo ao estatuto do Tribunal de Justiça da CEE, foram apresentadas observações escritas por:

Governo do Reino dos Países Baixos, representado pelo Ministério dos Negócios Estrangeiros,

Comissão das Comunidade Europeias, representada pelo seu consultor jurídico, Johannes Fons Buhl, e por Berend Jan Drijber, membro do Serviço Jurídico da Comissão, na qualidade de agentes.

11.

O Tribunal, com base no relatório preliminar do juiz relator e ouvido o advogado-geral, decidiu iniciar a fase oral do processo sem instrução.

12.

O Tribunal, por decisão de 7 de Julho de 1989, em aplicação dos n.os 1 e 2 do artigo 95.o do Regulamento Processual, decidiu atribuir o processo à Sexta Secção.

III — Resumo das observações escritas apresentadas ao Tribunal

A — Quanto à primeira questão

13.

O Governo neerlandês afirma que a noção de «entrega de um bem», na acepção do n.o 1 do artigo 5.o da sexta directiva, não é objecto de maior precisão nesse texto. Será, portanto, natural que os Estados-membros se remetam para o seu direito civil para apreciar o conteúdo da «entrega de um bem». Será de qualificar «entrega de um bem» a transferência da propriedade jurídica de um bem corpóreo, na acepção do direito civil aplicável nos Estados-membros. Por força do n.o 1 do artigo 671.o do código civil neerlandês, a propriedade jurídica de um bem imóvel apenas é transferida no momento em que o acto é transcrito nos registos públicos. Contudo, esta perspectiva de direito civil não implica uma resposta afirmativa à primeira questão submetida pelo Hoge Raad. O Governo neerlandês entende que há que ter em conta que a sexta directiva tem por objectivo garantir a neutralidade do sistema comunitário dos impostos sobre o volume de negocios. Portanto, actos que, do ponto de vista econòmico, são de considerar em pé de igualdade com a transferência da propriedade jurídica deverão ser considerados inseridos na noção da «entrega de um bem». Assim ocorrerá com o acto pelo qual a transferência do poder de disposição, de facto, sobre um bem é efectuada para terceiro, que obtém, assim, a totalidade dos benefícios económicos decorrentes desse bem. Em semelhante caso, esse terceiro disporá do bem como se fosse o proprietário.

14.

Esta interpretação da noção «entrega de um bem» é corroborada pelas outras disposições do artigo 5.o da sexta directiva, por força das quais actos pelos quais o terceiro recebe um poder de disposição menos vasto do que aconteceria aquando de uma transferência económica, serão considerados como «entrega de um bem». Daí conclui o Governo neerlandês que o n.o 1 do artigo 5.o da sexta directiva compreende quer a transferência económica quer a transferência da propriedade jurídica de um bem.

15.

Quando as partes convencionem a transferência da propriedade jurídica e, ao mesmo tempo, a transferência económica, será a primeira que constituirá a «entrega de um bem». A transferência económica não revestirá um significado autónomo do ponto de vista da cobrança do imposto sobre o volume de negócios. Se as partes decidirem apenas realizar a transferência económica, então esta constituirá a «entrega de um bem». A transferência da propriedade jurídica, que ocorra seguidamente, não terá consequências para a aplicação do imposto sobre o volume de negócios.

16.

O Governo neerlandês observa, finalmente, que o teor do n.o 1 do artigo 5.o da sexta directiva, em especial o período «... dispor de um bem corpóreo, como proprietário», milita a favor da tese de que esse artigo visa também as transferências económicas.

17.

Em conclusão, o Governo neerlandês propõe ao Tribunal de Justiça que responda pela negativa à primeira questão prejudicial.

18.

A Comissão, também ela, propõe que se responda pela negativa à primeira questão.

19.

A Comissão invoca igualmente o argumento literal apresentado pelo Governo neerlandês.

20.

Convém, segundo a Comissão, dar uma definição comunitária aos termos utilizados nas directivas, pois que, assim, a aplicação uniforme do sistema harmonizado do imposto sobre o valor de negócios será garantida. Eis a razão pela qual a «entrega de um bem» não pode ser definida por referência à transferência da propriedade jurídica tal como é regulada pelas disposições internas dos Estados-membros.

21.

A Comissão acrescenta que, aquando da elaboração das directivas sobre o IVA, ter--se-á optado por uma concepção económica da noção de «entrega de um bem», que visará qualquer transacção que, do ponto de vista comercial, deva ser assimilada a uma transferência da propriedade jurídica. A noção de «entrega de um bem» não se limitará à aquisição do poder de disposição sobre esse bem a título da propriedade jurídica.

22.

A Comissão propõe ao Tribunal que responda da forma seguinte à primeira questão submetida pelo Hoge Raad:

«O n.o 1 do artigo 5.o da sexta directiva não se limita à transferência da propriedade jurídica do bem».

B — Quanto à segunda questão

23.

O Governo neerlandês entende que uma transferência económica, tal como foi definida na segunda questão, pode constituir uma entrega de um bem, na acepção do n.o 1 do artigo 5.o da sexta directiva. Contudo, a circunstância de o detentor da propriedade jurídica se ter comprometido a transferi-la em data futura constituirá um indício em apoio da hipótese segundo a qual, no caso vertente, prevalece a transferência da propriedade jurídica.

24.

Convirá apreciar, caso a caso, qual das duas transferências é constitutiva da «entrega do bem», na acepção do n.o 1 do artigo 5.o da sexta directiva. Essa apreciação far-se-á em função do momento em que se efectua a transferência económica. Se o período de tempo que medeia entre esta e a transferência da propriedade jurídica é muito longo, ou se é indeterminado, então a transferência económica será constitutiva da «entrega de um bem».

25.

O Governo dos Países Baixos conclui no sentido de que se deve responder pela negativa à segunda questão, dado que, tendo em conta as circunstâncias do caso vertente na causa principal, será a transferência da propriedade jurídica e não a transferência económica a preponderante.

26.

A Comissão entende que a transferência económica se insere na noção da «entrega de um bem». Essa transferência compreenderá o direito de dispor do bem, o que comportará a possibilidade de explorar, transformar e hipotecar o bem e assumir o risco das flutuações do seu valor.

27.

A Comissão entende que uma interpretação extensiva da noção de «entrega de um bem» encontra apoio no facto dos n.os 3 e 4 do artigo 5.o da sexta directiva assimilarem a uma «entrega de um bem» uma série de operações juridicamente diferentes mas economicamente similares. Razões de neutralidade impõem que as operações equivalentes a uma entrega de um bem sejam sujeitas a IVA ao mesmo título que a transferência da propriedade jurídica do bem.

28.

A Comissão entende que essa concepção ampla da noção «entrega de um bem» não sofre alteração quando as partes, aquando da transferência económica, acertam a futura transferência da propriedade jurídica do bem. Razões de segurança jurídica justificam que não se faça depender a tributação da transferência económica de circunstâncias arbitrárias, como sejam o conteúdo do contrato ou a forma como o direito aplicável regula a transferência da propriedade jurídica.

29.

A Comissão conclui que cabe ao juiz nacional analisar, em função das particularidades de cada contrato, se ocorreu ou não uma transferência do direito de dispor do bem como proprietário.

30.

Propõe ao Tribunal que responda da seguinte forma à segunda questão submetida pelo Hoge Raad:

«Incumbe ao juiz nacional estabelecer, caso a caso, com base nos factos que deve apreciar, se o adquirente obteve o direito de dispor do bem como proprietário.»

G. F. Mancini

Juiz relator


( *1 ) Língua do processo: neerlandês.

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ACÓRDÃO DO TRIBUNAL (Sexta Secção)

8 de Fevereiro de 1990 ( *1 )

No processo C-320/88,

que tem por objecto um pedido apresentado ao Tribunal, nos termos do artigo 177.o do Tratado CEE, pelo Hoge Raad dos Países Baixos, destinado a obter, no processo pendente neste órgão jurisdicional entre

Staatssecretaris van Financiën

e

Shipping and Forwarding Enterprise Safe BV (Safe Rekencentrum BV), com sede em Hillegom (Países Baixos),

uma decisão a título prejudicial sobre a interpretação do n.o 1 do artigo 5.o da sexta Directiva 77/3 8 8/CEE do Conselho, de 17 de Maio de 1977, relativa à harmonização das legislações dos Estados-membros respeitantes aos impostos sobre o volume de negócios — Sistema comum do imposto sobre o valor acrescentado: matéria colectável uniforme (JO L 145, p. 1; EE 09 Fl p. 54),

O TRIBUNAL (Sexta Secção),

constituído pelos Srs. C. N. Kakouris, presidente de secção, T. Koopmans, G. F. Mancini, T. F. O'Higgins, M. Diez de Velasco, juízes,

advogado geral: W. Van Gerven

secretário: D. Louterman, administradora principal

vistas as observações apresentadas:

em representação do Governo do Reino dos Países Baixos, pelo Dr. B. R. Bot, secretário-geral no Ministério dos Negocios Estrangeiros, na qualidade de agente,

em representação da Comissão das Comunidades Europeias, pelo seu consultor jurídico, Johannes Fons Buhl, e por Berend Jan Drijber, membro do Serviço Jurídico da Comissão, na qualidade de agentes,

visto o relatório para a audiência e após a realização desta em 12 de Outubro de 1989,

ouvidas as conclusões do advogado-geral apresentadas na audiência de 9 de Novembro de 1989,

profere o presente

Acórdão

1

Por acórdão de 19 de Outubro de 1988, que deu entrada no Tribunal em 3 de Novembro de 1988, o Hoge Raad dos Países Baixos submeteu, nos termos do artigo 177.o do Tratado CEE, questões prejudiciais relativas à interpretação do n.o 1 do artigo 5.o da sexta Directiva 77/388/CEE do Conselho, de 17 de Maio de 1977, relativa à harmonização das legislações dos Estados-membros respeitantes aos impostos sobre o volume de negócios — Sistema comum do imposto sobre o valor acrescentado: matéria colectável uniforme (JO L 145, p. 1; EE 09 Fl p. 54, de ora em diante «sexta directiva»).

2

Estas questões foram suscitadas no âmbito de um litígio que opõe o Staatssecretaris van Financiën dos Países Baixos ao contribuinte Shipping and Forwarding Enterprise Safe BV (Safe Rekencentrum BV, de ora em diante «Safe»). O litígio na causa principal tem por objecto uma liquidação pelo qual o inspector de impostos aplicou à Safe uma correcção do imposto sobre o volume de negócios correspondente, segundo o inspector, à entrega efectuada pela Safe à Kats Bouwgroep NV (de ora em diante «Kats») de um imóvel compreendendo uma vivenda com dependências (de ora em diante «imóvel»).

3

Resulta dos autos que, nos termos de uma escritura pública, de 19 de Junho de 1979, celebrada entre a Safe e a Kats, a primeira devia transferir para a segunda, contra o pagamento de 2,25 milhões de HFL, um direito incondicional sobre o imóvel, livre de hipotecas e de outros direitos reais. Por força das disposições desse acto, as flutuações de valor, os benefícios e os encargos do imóvel ficavam por conta e risco da Kats, que adquiria o poder de dispor do imóvel. Além disso, a Safe obrigava-se a transferir a propriedade do imóvel quando a Kats o desejasse, mas o mais tardar a 31 de Dezembro de 1982. Para essa finalidade, a Safe conferia à Kats mandato irrevogável para proceder aos actos que operam a transferência da propriedade jurídica do imóvel. Em 11 de Agosto de 1983, os administradores da falência da Kats celebraram com um terceiro adquirente uma escritura pública nos termos da qual cediam a esse terceiro, por 450000 HFL, os direitos que a Kats detinha sobre o imóvel ao abrigo da escritura de 19 de Junho de 1979. Nesse mesmo dia, a Safe transferiu a propriedade jurídica do imóvel para o terceiro adquirente.

4

A Safe reclamou da correcção da liquidação em litígio para o inspector de finanças, recorrendo depois para o Gerechtshof de Haia. O litígio foi seguidamente submetido pelo Staatssecretaris van Financiën ao Hoge Raad dos Países Baixos, que decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal as seguintes questões prejudiciais :

«1)

O n.o 1 do artigo 5.o da sexta directiva deve ser interpretado no sentido de que só existe entrega de um bem, na acepção da referida disposição, se houver transmissão da propriedade jurídica do bem em questão?

2)

Em caso de resposta negativa à primeira questão, pode-se igualmente falar de entrega de um bem, na acepção acima referida, quando o proprietário jurídico do bem em questão:

assumiu contratualmente em relação à outra parte compromissos por força dos quais as alterações de valor e os rendimentos e encargos do bem correm a partir de então por conta e risco desse co-contratante;

se comprometeu por força do referido contrato a transmitir ao seu co-contratante a propriedade jurídica do bem num momento futuro;

conferiu pelo referido contrato mandato irrevogável ao seu co-contratante para praticar todos os actos relativos a esta transmissão;

colocou efectivamente o bem à disposição do seu co-contratante, em conformidade com o referido contrato?»

5

Para mais ampla exposição dos factos do processo na causa principal, da tramitação processual, bem como das observações escritas apresentadas ao Tribunal, remete-se para o relatório para audiência. Estes elementos apenas serão adiante retomados na medida do necessário para a fundamentação da decisão do Tribunal.

Quanto à primeira questão

6

Há que recordar que, nos termos do n.o 1 do artigo 5.o da sexta directiva, «por ‘entrega de um bem’ entende-se a transferência do poder de dispor de um bem corpóreo, como proprietário».

7

Resulta do teor dessa disposição que a noção de entrega de um bem não se refere à transferência da propriedade nas formas previstas no direito interno aplicável, mas inclui qualquer operação de transferência de um bem corpóreo por uma parte que confira a outra parte o poder de dispor dele, de facto, como se fosse o seu proprietário.

8

Esta concepção é conforme à finalidade da directiva, que visa, designadamente, basear o sistema comum do IVA numa definição uniforme das operações tributáveis. Ora, esse objectivo poderia ficar comprometido se a verificação de uma entrega de bens, que é uma das três operações tributáveis, ficasse sujeita à ocorrência de condições que variam de um Estado-membro para outro, como é o caso das relativas à transferência da propriedade nos termos do direito civil.

9

Por conseguinte, há que responder à primeira questão que o n.o 1 do artigo 5.o da sexta directiva deve ser interpretado no sentido de que é considerada como «entrega de um bem» a transferência do poder de dispor de um bem corpóreo como proprietário, ainda que não se proceda à transferência da propriedade jurídica do bem.

Quanto à segunda questão

10

Resulta dos autos que ao órgão jurisdicional nacional se colocou, especificamente, a questão de saber se a transferência da «propriedade económica», conceito que se desenvolveu em direito fiscal neerlandês, poderá ser assimilada a uma entrega de um bem, na acepção do artigo 5.o da sexta directiva. Assim, o órgão jurisdicional nacional definiu os quatro elementos constitutivos de uma transferência da propriedade económica no caso que lhe cabe julgar.

11

Ao inserir os quatro elementos assim definidos na segunda questão, o órgão jurisdicional nacional pede, na verdade, ao Tribunal que aplique a disposição do n.o 1 do artigo 5.o da sexta directiva ao contrato que é objecto do litígio na causa principal. Compete, contudo, ao órgão jurisdicional nacional, de acordo com a repartição de funções estabelecida pelo artigo 177.o do Tratado, aplicar as normas de direito comunitário, da forma que tenham sido interpretadas pelo Tribunal, a um caso concreto. Com efeito, essa aplicação não pode ser efectuada sem uma apreciação dos factos da causa no seu conjunto.

12

As condições específicas enunciadas na segunda questão são, de resto, a ilustração de que isto assim é, pois que evocam, por um lado, um compromisso de transferir a propriedade nos termos do direito civil, elemento que não parece sempre de natureza a estabelecer a transferência de um poder efectivo como o indicado no n.o 1 do artigo 5.o da sexta directiva e, por outro, a colocação do bem à disposição efectiva do co-contratante, elemento que normalmente deverá contribuir para que se verifique essa transferência do poder efectivo.

13

Há, pois, que responder à segunda questão que cabe ao juiz nacional determinar, caso a caso, em função da matéria de facto do caso concreto, se ocorreu a transferência do poder de dispor de um bem como proprietário, na acepção do n.o 1 do artigo 5.o da sexta directiva.

Quanto às despesas

14

As despesas efectuadas pelo Governo dos Países Baixos e pela Comissão das Comunidades Europeias, que apresentaram observações ao Tribunal, não são reembolsáveis. Revestindo o processo, quanto às partes na causa principal, a natureza de incidente suscitado perante o órgão jurisdicional nacional, compete a este decidir quanto às despesas.

 

Pelos fundamentos expostos,

O TRIBUNAL (Sexta Secção),

pronunciando-se sobre as questões submetidas pelo Hoge Raad dos Países Baixos, por acórdão de 19 de Outubro de 1988, declara:

 

1)

O n.o 1 do artigo 5.o da sexta directiva deve ser interpretado no sentido de que é considerada como «entrega de um bem» a transferencia do poder de dispor de um bem corpóreo como proprietário, ainda que não se proceda à transferência da propriedade jurídica do bem.

 

2)

Cabe ao juiz nacional determinar, caso a caso, em função da matéria de facto do caso concreto, se ocorreu a transferência do poder de dispor de um bem como proprietário, na acepção do n.o 1 do artigo 5.o da sexta directiva.

 

Kakouris

Koopmans

Mancini

O'Higgins

Diez de Velasco

Proferido em audiência pública no Luxemburgo, a 8 de Fevereiro de 1990.

O secretário

J.-G. Giraud

O presidente da Sexta Secção

C. N. Kakouris


( *1 ) Língua do processo: neerlandês.

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