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Document 52009AE1478

Parecer do Comité Económico e Social Europeu sobre a Comunicação da Comissão ao Conselho, ao Parlamento Europeu, ao Comité Económico e Social Europeu e ao Comité das Regiões UE, África e China: Rumo a um diálogo e uma cooperação trilateral [COM(2008) 654 final]

JO C 318 de 23.12.2009, p. 106–112 (BG, ES, CS, DA, DE, ET, EL, EN, FR, IT, LV, LT, HU, MT, NL, PL, PT, RO, SK, SL, FI, SV)

23.12.2009   

PT

Jornal Oficial da União Europeia

C 318/106


Parecer do Comité Económico e Social Europeu sobre a Comunicação da Comissão ao Conselho, ao Parlamento Europeu, ao Comité Económico e Social Europeu e ao Comité das Regiões UE, África e China: Rumo a um diálogo e uma cooperação trilateral

[COM(2008) 654 final]

2009/C 318/21

Relator: Luca JAHIER

Em 17 de Outubro de 2008, a Comissão decidiu, nos termos do artigo 262.o do Tratado que institui a Comunidade Europeia, consultar o Comité Económico e Social Europeu sobre a:

«Comunicação da Comissão ao Conselho, ao Parlamento Europeu, ao Comité Económico e Social Europeu e ao Comité das Regiões – UE, África e China: Rumo a um diálogo e uma cooperação trilateral»

Foi incumbida da preparação dos correspondentes trabalhos a Secção Especializada de Relações Externas que emitiu parecer em 3 de Setembro de 2009, sendo relator Luca JAHIER.

Na 456.a reunião plenária de 30 de Setembro e 1 de Outubro de 2009 (sessão de 1 de Outubro), o Comité Económico e Social Europeu adoptou, por 145 votos a favor, 1 voto contra e 3 abstenções, o seguinte parecer:

1.   Conclusões e recomendações

1.1

Nos últimos quinze anos, a África foi objecto de atenção crescente pela China, que se tornou de forma estável no terceiro parceiro comercial e económico do continente, graças ao aumento constante do volume de trocas comerciais, do investimento e das parcerias celebradas com a grande maioria dos países africanos. Apesar de permanecer o primeiro parceiro económico de África, a primazia da Europa tende a esboroar-se neste mundo multipolar em que os países emergentes se esforçam por estabelecer um novo equilíbrio. Uma vez que a África permanece uma região próxima que partilha interesses comuns, a intervenção de outras potências obriga a Europa a relançar as suas relações de parceria com o continente.

1.2

O Comité Económico e Social Europeu (CESE) acolhe com satisfação a proposta da Comissão de lançar um diálogo e uma cooperação trilateral entre a União Europeia, a China e África. Ainda que o resultado seja incerto e problemático, esta iniciativa é extremamente necessária e inevitável. Em particular, merece destaque a abordagem pragmática e progressiva e a pertinência dos quatro sectores específicos propostos, a saber, paz e segurança, infra-estruturas, exploração dos recursos naturais e do ambiente, agricultura e segurança alimentar.

1.3

Todavia, uma cooperação trilateral só faz sentido se for eficaz e paritária. Há que tomar seriamente em consideração o ponto de partida que consiste na assimetria das relações existentes. A China é um único e grande país que trata individualmente com cada país africano, ao passo que a UE tem frequentemente dificuldades em falar a uma só voz nas suas relações com o continente. Embora a presença chinesa em África não esteja isenta de aspectos menos claros, muitos governos africanos tendem a preferir a parceria com Pequim, que se lhes afigura mais disposto a responder aos seus pedidos sem impor condições nem procedimentos burocráticos.

1.4

Para que a cooperação seja eficaz é necessário, em primeiro lugar, verificar o real interesse de todas as partes em causa na estratégia proposta e o seu envolvimento concreto no diálogo trilateral. A Comissão e o Conselho deveriam, por conseguinte, levar a cabo todas as iniciativas necessárias para responder de forma adequada às propostas em causa.

É igualmente necessário que:

a União Europeia se empenhe mais em harmonizar a sua acção, tanto a nível económico como no domínio diplomático e da cooperação para o desenvolvimento, através de uma abordagem geoestratégica a longo prazo mais assertiva, que dê novo ímpeto à Estratégia UE-África adoptada em Lisboa e aumente as dotações financeiras;

os governos e a União Africana prestem maior atenção aos benefícios a longo prazo que os seus países podem tirar de uma parceria com a Europa e a China, limitando o espaço reservado às vantagens imediatas dos líderes locais. Por isso, devem ser apoiados a reforçar as respectivas capacidades de definição e gestão das estratégias de desenvolvimento regional e do continente a longo prazo;

a China se empenhe cada vez mais em assegurar que os frutos desta cooperação trilateral, assim como da cooperação bilateral que estabelece com os vários países africanos, sejam canalizados maioritariamente para toda a sociedade e para as populações locais, e não apenas para os seus governos.

1.5

Centrar-se no objectivo do crescimento local sustentável significa que se deve assegurar, em particular, que

se aumenta a criação de valor acrescentado local;

se constroem novas infra-estruturas sociais, tendo em conta as estruturas existentes;

se realiza uma verdadeira transferência de competências e de tecnologias;

se apoia o crescimento dos mercados locais e regionais, das empresas locais e, mais em geral, a melhoria das condições de vida e de trabalho;

se apoiam as parcerias entre empresas estrangeiras e empresas locais;

não se agrava a dívida de forma insustentável a longo prazo e se reforça, em geral, as instituições locais e regionais.

1.6

Um diálogo e uma cooperação paritários devem igualmente assegurar a cada parte a liberdade de incluir na agenda também os aspectos mais controversos ou aqueles que são objecto de considerações e preocupações divergentes. À luz do disposto na decisão do Conselho da União Europeia, seria mais coerente com a Estratégia de Lisboa de 2007 e com o Acordo de Cotonu de 2000, que rege as relações entre a UE e os países ACP, se questões fundamentais como a governação democrática, os direitos humanos e o papel da sociedade civil – actualmente omissos na comunicação –, fossem introduzidas no processo proposto.

1.7

O CESE considera particularmente necessário realçar a importância crucial de envolver neste diálogo trilateral todos os actores não estatais e, em particular, do sector privado, das organizações sindicais, dos agricultores, das organizações de mulheres e dos consumidores. O papel destes actores cresceu fortemente nos últimos anos, nomeadamente devido ao êxito dos acordos de Lomé e de Cotonu. Este círculo virtuoso de participação dos vários actores socioeconómicos nas relações UE-África não é, por conseguinte, penalizado nem posto em risco, mas sim valorizado de modo adequado. O CESE convida a Comissão a integrar este ponto essencial no corpo da proposta.

1.8

Dada a vocação multilateral da Europa e tendo em conta o interesse crescente demonstrado pelos Estados Unidos da América em relação a África, a cooperação trilateral entre a UE, a China e África poderia igualmente ser alargada aos EUA, com vista a uma parceria mais completa, eficaz e equitativa nos sectores indicados, mas reservando-se a possibilidade de alargar a colaboração a outros domínios.

2.   Introdução

2.1

A África está a transformar-se muito rapidamente. Apesar de representar apenas 2 % do PIB e menos de 1 % da produção industrial mundial, o continente africano começa a entrar nos fluxos da globalização, após décadas de marginalização geopolítica e económica. A União Europeia continua a ser o seu principal parceiro económico, mas a África está a ser cada vez mais procurada pelos «financiadores emergentes», sobretudo a China, mas também a Índia, o Japão, a Coreia do Sul, os grandes países da América Latina e os países do Golfo. Nos últimos anos, também os Estados Unidos da América se voltaram para este continente, interessados sobretudo em garantir um abastecimento energético seguro e prevenir a ameaça do terrorismo. Apesar de 40 % da sua população viver abaixo do limiar da pobreza, a África está a ser cada vez menos encarada como um «continente desesperado» e cada vez mais como «uma nova fronteira» que apresenta oportunidades de desenvolvimento e de negócios.

2.2

O próprio continente africano conheceu inovações importantes de natureza política durante a última década, designadamente o nascimento da União Africana, com o lançamento do seu plano estratégico 2004-2009 e a aplicação de novas capacidades de intervenção na resolução de conflitos, o reforço das comunidades económicas regionais e programas para o desenvolvimento económico (a NEPAD – Nova Parceria para o Desenvolvimento de África) e para a governação (Mecanismo Africano de Avaliação pelos Pares).

2.3

Estas mudanças levaram a que a atenção internacional redobrada conferida às questões africanas, como sublinhou inúmeras vezes o comissário Louis Michel (1), tenha incidido em de três eixos principais, a saber, os interesses económicos, os interesses referentes à segurança e os novos interesses geoestratégicos e de poder.

2.4

No plano económico, para além da competição para aceder aos recursos naturais do continente, a começar pelos recursos energéticos, e para os controlar, a atenção virou-se igualmente para as potencialidades ainda enormes do mercado interno africano que, nos últimos anos, conheceu um crescimento médio de 6 %, marcado por uma inflação baixa e por um processo virtuoso de considerável redução da dívida pública.

2.5

Em ambos os domínios, a China demonstrou grande determinação e capacidade de investimento estrutural a longo prazo (2), modificando a relação histórica iniciada nos anos 50 com os países africanos. A partir de meados dos anos 90, apesar de continuar a privilegiar a cooperação sul-sul entre países em vias de desenvolvimento, a China dedicou maior atenção às oportunidades económicas que a África proporciona e estabeleceu relações amigáveis com a quase totalidade dos países africanos. A dimensão continental da nova abordagem chinesa foi confirmada com a criação, por Pequim, do Fórum sobre a Cooperação China-África (FOCAC) (3), cujas cimeiras trienais (Pequim 2000, Adis Abeba 2003, Pequim 2006 e a prevista para Dezembro de 2009 em Sharm el-Sheik, Egipto) marcaram o ritmo e a evolução permanente das relações entre a China e os países africanos. A estratégia chinesa renovada para o continente foi apresentada oficialmente com a publicação, em Janeiro de 2006, do Livro Branco sobre a política da China em África (4).

2.6

A profunda mudança da situação em comparação com as décadas precedentes levou também a União Europeia a rever a sua política africana. Este processo culminou com a adopção, em Dezembro de 2007, em Lisboa, de uma nova Estratégia Conjunta África-UE, sobre a qual o Comité teve oportunidade de se pronunciar em parecer denso e exaustivo (5).

2.7

Enquanto a China e a Europa redescobrem o interesse pela África e a disponibilidade para investirem neste continente, o modo como estes importantes actores vão definir, no futuro, a sua linha de acção recíproca suscita questões e expectativas, quer pelas evidentes perspectivas de concorrência, quer pelo possível espaço para cooperação. Com efeito, é necessário ter em conta que apesar de, em termos absolutos, a UE e a China ocuparem respectivamente o primeiro e o terceiro lugar entre os parceiros comerciais e os investidores estrangeiros em África, o peso relativo das relações comerciais entre a Europa e África diminuiu, na última década, enquanto que o da China-África aumentou drasticamente (6).

2.8

Tendo em conta o peso da China em África e tendo-lhe sido igualmente solicitado numa resolução sobre esta matéria, adoptada em Abril de 2008, pelo PE (7), a Comissão Europeia lançou, portanto, no último biénio, uma reflexão estruturada, acompanhada de iniciativas importantes de consulta alargada (8), para compreender as repercussões dos processos em curso e identificar possíveis linhas de diálogo trilateral entre a UE.

3.   Síntese da comunicação da Comissão

3.1

A comunicação propõe procurar as modalidades mais propícias a um processo de diálogo e de cooperação equitativa entre a África, a China e a UE. O objectivo principal da Comissão é, portanto, fomentar a compreensão mútua e permitir a adopção de acções conjuntas e coordenadas em sectores estratégicos, de acordo com prioridades definidas, principalmente, pelas instituições africanas.

3.2

A comunicação baseia-se numa abordagem pragmática e progressiva, que se centra, essencialmente, numa visão de coordenação concreta em sectores considerados cruciais para promover a estabilidade e o desenvolvimento do continente africano, tais como:

paz e segurança em África, sobretudo numa óptica de colaboração mais estreita com a União Africana (UA) e com a China, no âmbito das Nações Unidas, para apoiar o desenvolvimento da Arquitectura Africana de Paz e Segurança e reforçar as capacidades de gestão das operações de manutenção da paz por parte da UA;

apoio às infra-estruturas africanas, que são a espinha dorsal do desenvolvimento, do investimento e do comércio, de uma maior interconectividade e integração regional, em especial nos sectores dos transportes, das telecomunicações e da energia;

gestão sustentável do ambiente e dos recursos naturais que, ao reforçar a ligação com iniciativas como a Iniciativa para a Transparência das Indústrias Extractivas (ITIE), o Plano de Acção da UE em matéria de Aplicação da Legislação, Governação e Comércio no Sector Florestal (FLEGT) ou o Processo de Kimberley para a Transparência na Indústria de Diamantes, pode permitir processos mais transparentes, mais transferência de tecnologia e financiamento para lutar contra as alterações climáticas e fomentar o desenvolvimento de fontes de energia renováveis;

agricultura e segurança alimentar, com o propósito de aumentar a produtividade e os níveis de produção agrícola de África, sobretudo através da investigação e da inovação agrícolas, dos controlos veterinários e da segurança alimentar, no contexto do Programa Integrado para o Desenvolvimento da Agricultura em África (CAADP).

3.3

Para a Comissão, o diálogo e as consultas devem ocorrer a todos os níveis (nacional, regional, continental e na relação bilateral UE-China), para que os decisores políticos das três partes possam melhorar a compreensão mútua das respectivas políticas e abordagens, desenvolvendo, deste modo, possibilidades concretas de cooperação. Simultaneamente, o processo servirá também para aumentar a eficácia da ajuda, de harmonia com a Declaração de Paris de Março de 2005 e as conclusões do seminário de Acra de Setembro de 2008.

3.4

O Conselho da União Europeia ratificou e aprovou as principais recomendações da comunicação, considerando que este diálogo trilateral poderá contribuir «para apoiar os esforços empreendidos pela África e pela comunidade internacional a favor da democratização, da integração política e económica, da boa governação e do respeito pelos direitos humanos» (9), recomendando um exame mais aprofundado das propostas de medidas concretas.

3.5

O CESE nota, no entanto, com preocupação e decepção que tanto a China como a União Africana ainda não assumiram, até à data, qualquer posição oficial sobre o diálogo trilateral proposto pela UE. A cooperação com África não figurava na agenda da última cimeira UE-China, ao contrário do que propunha a comunicação em apreço (10). Até ao momento não há provas tangíveis de que a China e a União Africana estariam dispostas a aceitar a proposta da UE.

4.   Elementos positivos

4.1

A comunicação contém diversos elementos interessantes e positivos, nomeadamente:

a abordagem de diálogo e com uma lógica de intercâmbio que se insere numa política de procura de coordenação entre os doadores e as principais partes interessadas;

o pragmatismo revelado na identificação de quatro sectores incontestavelmente estratégicos e com vastas possibilidades de intervenção;

a proposta de uma construção gradual dessa cooperação trilateral, que procura valorizar todas as estruturas já existentes, em vez de criar pela enésima vez uma onerosa estrutura multilateral.

4.2

No atinente, em particular, ao segundo ponto, é indubitável que aqueles quatro sectores são cruciais para o desenvolvimento do continente africano, assim como, embora de forma diferente, para as relações bilaterais China-África e Europa-África.

4.3

O reacender de alguns conflitos e a fragilidade dos processos de paz em curso, aliados ao risco de desenvolvimento de novas formas de integralismo e ou de zonas em que se teme possam vir a instalar-se bases de terrorismo, tornam extremamente pertinente a cooperação no domínio da manutenção e da promoção da paz e da segurança. Há que dar particular atenção ao apoio à arquitectura africana de paz e segurança e às operações de manutenção da paz da UA, sob a forma de criação de capacidades, formação, apoio logístico e ou económico.

4.4

A cooperação no domínio da manutenção e da promoção da paz e da segurança deve, no entanto, prever também um diálogo específico sobre as regras inerentes ao fornecimento e ao comércio de armas, em particular a governos ou a grupos armados não estatais envolvidos em conflitos em curso e ou que cometam graves violações dos direitos do Homem (11), incluindo-se, deste modo, nas relações trilaterais China-Europa-África um argumento que já foi debatido na ONU.

4.5

A maior importância dada agora ao investimento em infra-estruturas, durante muito tempo negligenciadas pela cooperação europeia e que são, ao invés, um pilar essencial da abordagem chinesa para África, é estrategicamente pertinente por duas razões. Antes de mais, são necessárias infra-estruturas adequadas para garantir o acesso e o transporte de matérias-primas ou de produtos colocados nos mercados africanos, ou seja, formas de integração regional concreta e eficaz que são fundamentais para o desenvolvimento social e económico de África. A segunda prende-se com o facto de a melhoria ou a criação de raiz de infra-estruturas ser uma prioridade clara de muitos governos africanos e, por isso, não pode estar subordinada apenas às capacidades locais de financiamento e de sustentabilidade financeira (12).

4.6

A importância da sustentabilidade ambiental e da gestão dos recursos naturais é, por si, evidente, não só no que se refere ao contexto internacional das alterações climáticas, mas também em relação a todos os aspectos ligados às condições de exploração, de transporte e de utilização dos recursos naturais do continente, em particular os minerais e energéticos.

4.7

Nos últimos anos o debate tem girado em torno sobretudo das condições ambientais e de trabalho nos estaleiros geridos ou associados a empresas chinesas que operam em África, como amplamente documentado por um estudo da African Labour Research Network (rede africana de investigação sobre o trabalho) (13). No entanto, não nos podemos esquecer que o mesmo se pode dizer em relação a muitas empresas europeias ou multinacionais. O problema do cumprimento das normas internacionais e em matéria de transparência (14) na celebração e execução dos contratos com os governos africanos diz, assim, respeito, em igual medida, à China, Europa e África e deve, portanto, ser parte integrante do diálogo trilateral sobre a gestão sustentável dos recursos naturais e do ambiente, bem como sobre o apoio às infra-estruturas africanas.

4.8

A agricultura e a segurança alimentar passaram finalmente a figurar à cabeça das prioridades dos principais doadores e da estratégia comum para o continente africano. É, no entanto, necessário que esta atenção se traduza, com urgência, em acções concretas e sustentadas a longo prazo, que digam respeito ao desenvolvimento rural no seu todo, assegurando o pleno protagonismo das populações rurais e o envolvimento das organizações de agricultores, e garantindo-lhes o acesso aos recursos locais e a sua gestão a longo prazo.

4.9

Nesta perspectiva, é também útil ter em conta o recente alerta lançado pela «Cimeira das organizações de agricultores das cinco regiões africanas», organizada em Roma pela Coldiretti, que diz respeito ao considerável aumento na aquisição de terras agrícolas em África e noutros países em vias de desenvolvimento por países como a Coreia do Sul, a China, os Emirados Árabes Unidos, a Arábia Saudita e o Japão (15), para garantirem o seu aprovisionamento alimentar e os recursos para produção de biocombustíveis.

4.10

A cooperação sobre a segurança alimentar pode ser usada igualmente para lançar o diálogo sobre outros temas relevantes, como o respeito dos Objectivos de Desenvolvimento do Milénio, a protecção dos grupos mais vulneráveis e a protecção da saúde. Neste último domínio, dever-se-ia dar atenção particular à identificação de estratégias comuns de luta contra as três grandes pandemias (16) – malária, VIH/Sida e tuberculose –, que já são, aliás, objecto de cooperação internacional em instâncias multilaterais.

4.11

No que se refere ao papel das instituições africanas no processo de diálogo trilateral, o papel central da União Africana, a par das organizações económicas regionais e de cada Estado, é muito apreciado. A abertura do diálogo anual UE-China à participação da troika UA é igualmente importante, tal como a ideia de confiar à Comissão da UA de Adis Abeba um papel de mediador nas consultas trilaterais regulares. Estas indicações vão de par com a necessidade já referida pelo Comité no parecer sobre a estratégia UE-África (17), de os governos e as instituições africanas assumirem responsabilidades concretas, a fim de reforçarem a sua soberania e legitimidade e criarem parcerias verdadeiramente equilibradas. É, no entanto, necessário verificar que essas prioridades são partilhadas e assumidas como suas pela UA e que se traduzem, o mais rapidamente possível, em planos de acção concretos.

4.12

A procura de um diálogo trilateral entre a UE, a China e África afigura-se tanto mais pertinente se considerarmos a ofensiva de charme lançada por Pequim neste continente. Para muitos governos africanos, a China apresenta-se como o modelo a seguir por ter conseguido sair da pobreza, vencer as doenças e tornar-se num actor de primeiro plano no palco internacional, e tudo isto no espaço de apenas uma geração. A batalha da China contra a pobreza travou-se, em primeiro lugar, nas zonas rurais, visando o desenvolvimento e o aumento da produtividade agrícola, uma estratégia que pode servir igualmente os interesses dos países africanos (18). O fascínio exercido pela China aumenta também pelo facto de este país não ter uma herança colonial, continuando a definir-se como um país em vias de desenvolvimento que refuta a lógica da relação doador-beneficiário, historicamente mais vinculada aos países da OCDE. Estas características, aliadas a uma vasta disponibilidade de meios para investir ou conceder empréstimos aos parceiros governativos africanos, conferem a Pequim uma evidente vantagem nas suas relações com África.

5.   Elementos negativos

5.1

No entanto, a relação entre a China e África apresenta, ao mesmo tempo, aspectos negativos que suscitam preocupação nos observadores externos e que merecem ser abordados no âmbito do diálogo a realizar durante o processo de cooperação trilateral proposto pela Comissão.

5.2

A crescente presença chinesa em África não está isenta de aspectos menos claros, a começar pelo regresso a uma posição central dos governos locais e das elites urbanas, o que leva a uma marginalização preocupante do sector privado africano, coloca em risco as modestas conquistas sociais obtidas pelos sindicatos africanos e põe em evidência as condições de trabalho que penalizam fortemente os trabalhadores locais. Uma verdadeira relação de parceria entre iguais deve prever a possibilidade para todas as três partes (UE, China e África) de incluir na agenda também os aspectos mais controversos ou aqueles que são objecto de considerações e preocupações divergentes.

5.3

Se compararmos os quatro sectores de cooperação propostos pela Comissão com os oito aspectos definidos como prioritários no Plano de Acção da Estratégia Europa-África celebrada em Lisboa (19), observa-se a ausência de temas importantes como a governação democrática, os direitos do Homem ou o trabalho digno. Para a UE, seria mais coerente com a Estratégia de Lisboa e com o Acordo de Cotonu de 2000 (20), que rege as relações entre a UE e os países ACP, se estas questões, assim como o papel da sociedade civil, fossem introduzidas no diálogo trilateral.

5.4

A UE e a China têm estratégias diferentes de intervenção em África. Enquanto a UE fornece grande parte da sua ajuda sob a forma de doações, impondo aliás cada vez mais condições políticas (respeito das regras democráticas, dos direitos do Homem, das convenções da OIT, luta contra a corrupção e progressos em matéria de práticas de boa governação, envolvimento da sociedade civil), com o objectivo de reduzir a pobreza, a China, por seu turno, concede geralmente empréstimos em condições vantajosas, grande parte deles destinados à construção de infra-estruturas e garantidos por contratos a longo prazo para exploração dos recursos naturais. Além disso, os empréstimos chineses parecem estarem vinculados ao recurso a empresas, bens e, por vezes até mesmo, mão-de-obra chineses, segundo formas de «ajudas condicionadas», que já foram, em grande medida, abandonadas pelos países da OCDE. Por último, as próprias regras vigentes na área da OCDE em matéria de contratos públicos favorecem, em muitos casos, as empresas de países emergentes, entre os quais principalmente a China.

5.5

A abordagem chinesa é, regra geral, mais do agrado das classes dirigentes africanas, pois não impõe condições e não é vítima do excesso burocrático da Europa, mas apresenta um risco duplo, designadamente, a criação de uma forma de reendividamento massivo, cujos efeitos a longo prazo podem ser insustentáveis, e o reforço da dependência das economias dos vários países das «monoculturas» e das suas exportações, que estão por seu turno ligadas às flutuações dos preços nos mercados internacionais.

5.6

Por seu turno, a Europa, não obstante continuar a ser o primeiro parceiro económico e comercial de África, tem dificuldade em falar a uma só voz e em criar e manter uma verdadeira coerência de conjunto das próprias políticas, sejam elas de desenvolvimento, comerciais ou de política externa e de segurança. No terreno persistem inúmeros entraves à coordenação da acção dos Estados-Membros, com a consequente perda de impacto e de eficácia.

6.   Outros pontos críticos

6.1

Para além das já referidas condições que a UE impõe nas suas relações com África, há outros elementos que marcam a diferença de abordagem entre a Europa e a China e que são constantemente recordados pelos vários governos africanos:

os diversos problemas sentidos nas relações entre a UE e os países africanos por ocasião das negociações para conclusão dos Acordos de Parceria Económica (APE), em comparação com uma abertura gradual e bem publicitada do mercado chinês às mercadorias africanas isentas de direitos aduaneiros (o número deve passar de 190 em 2006 para 440 até 2010);

o forte e visível empenho do governo chinês na construção de infra-estruturas, escolas, hospitais e edifícios públicos, em comparação com o número de projectos ligados a anteriores intervenções europeias e muitas vezes só parcialmente realizados;

uma resposta mais concreta da parte da China no domínio da educação e da formação profissional nos sectores agrícola, médico, científico e cultural, incluindo a abertura das universidades e dos centros de formação chineses ao ingresso de estudantes africanos;

a abundância de artigos manufacturados de origem chinesa, em alguns casos, pouco cumpridores das normas internacionais de segurança dos produtos, com graves consequências para a saúde pública e o ambiente, que invadem gradualmente os mercados e os agregados familiares de todo o continente, muitas vezes com consequências desastrosas para alguns sectores de produção locais, a começar pelo sector têxtil (21).

6.2

Por fim, a actual crise económica e financeira internacional incita a que se inicie uma reflexão sobre o seu possível impacto no continente africano (22).

As consequências da recessão mundial, a queda das exportações, as medidas proteccionistas em muitos mercados e a diminuição dos preços de muitas matérias-primas criam um cenário preocupante, que ameaça pôr seriamente em perigo as conquistas alcançadas na década passada, como a redução da dívida e dos défices públicos, o aumento e a concorrência em matéria de investimento em infra-estruturas e o saneamento dos sistemas fiscais, bem como os esforços de diversificação das estruturas de produção nacionais.

6.3

Perante a crise, a China reiterou e relançou recentemente o seu empenho no continente não só a nível das ajudas e empréstimos, como no domínio do investimento (23). A União Europeia esforça-se por respeitar os compromissos assumidos, mas alguns Estados-Membros já reduziram drasticamente os recursos e os compromissos financeiros bilaterais nas suas leis do Orçamento do Estado para 2009, sendo semelhantes, ou mesmo piores, as previsões para 2010. Ora, como foi dito em todas as recentes cimeiras, são necessários novos recursos.

6.4

As relações entre a Europa e África e entre a China e África são marcadas cada vez mais por um conjunto de dinâmicas migratórias ainda pouco estudadas, sobretudo no que concerne a entrada nos países africanos de cidadãos chineses. O lançamento de uma reflexão sobre as modalidades e a dimensão destes fluxos e sobre eventuais interligações pode ajudar a compreender o impacto que estes podem ter no desenvolvimento africano.

6.5

Por fim, o CESE considera fundamental a complexa questão da participação da sociedade civil, tema que já era considerado crucial pelos parceiros europeus (24) e que passou a ser parte integrante e significativa de todas as relações de parceria com África, em particular no seguimento do Acordo de Cotonu. Esta perspectiva não parece ser, de momento, relevante nas relações entre a China e África, nem nas relações bilaterais entre Pequim e os diferentes países.

Os quatro sectores indicados pela Comissão prestam-se a um envolvimento amplo e estruturado de todos os actores não estatais, em particular os empresários, os sindicatos e as organizações de agricultores, de mulheres e dos consumidores. O seu papel nas sociedades africanas, bem como nas dinâmicas económicas e nas relações políticas, reconhecido e reforçado precisamente em virtude do êxito do processo lançado com os acordos de Lomé e de Cotonu, corre o risco de perder importância e de ser novamente marginalizado se os diálogos bilaterais ou trilaterais se mantiverem apenas a nível intergovernamental. Ora, trata-se de um papel que deve ser considerado de valor inestimável, devendo ser valorizado e estimulado.

6.6

O CESE observa com preocupação que a comunicação em apreço não faz qualquer referência a esta questão nem às possibilidades concretas de envolvimento dos parceiros sociais ou dos intervenientes não estatais, em geral, no âmbito do processo proposto.

Bruxelas, 1 de Outubro de 2009

O Presidente do Comité Económico e Social Europeu

Mario SEPI


(1)  Ver, em particular, Louis MICHEL, Afrique-Europe: l'indispensable alliance, Pro-manuscripto, CE, dic. 2007.

(2)  Não se trata apenas dos recursos naturais, infra-estruturas e comércio. O principal banco chinês, o Industrial Land Commercial Bank of China, adquiriu 20 % do capital do maior banco sul-africano e de África, o Standard Bank, desembolsando para tal 5,6 mil milhões de dólares. Trata-se do maior investimento jamais realizado em África por um grupo estrangeiro.

(3)  Ver o sítio oficial do FOCAC: www.focac.org/eng/

(4)  China’s African policy, 12 de Janeiro de 2006, http://www.focac.org/eng/zgdfzzc/t463748.htm

(5)  JO C 77 de 31.3.2009, p. 148-156, «A estratégia UE-África», relator Gérard DANTIN, Setembro de 2008.

(6)  Os dados do FMI indicam que o volume comercial UE-África, que em 1995 representava 45 % do total das trocas comerciais africanas, desceu para pouco menos de 30 %, enquanto que a China passou de valores percentuais irrisórios em 1995 para os cerca de 27 % actuais. Em 2008, o comércio China-África atingiu um valor de 106,8 mil milhões de dólares americanos, ultrapassando, assim, com dois anos de antecedência e com um crescimento de 45 % em relação ao ano precedente, o objectivo de 100 mil milhões até 2010 anunciado na cimeira de Pequim de 2006. Ver igualmente o «Documento de trabalho dos serviços da Comissão – Anexos da Comunicação da Comissão – UE, África e China: Rumo a um diálogo e uma cooperação trilateral» (COM(2008) 654), SEC(2008) 2641 final.

(7)  Resolução do Parlamento Europeu, de 23 de Abril de 2008, sobre A política da China e os seus efeitos em África (A6-0080/2008/P6_TA(2008)0173), relatora Ana Maria GOMES, http://www.europarl.europa.eu/sides/getDoc.do?type=TA&reference=P6-TA-2008-0173&language=PT&ring=A6-2008-0080

(8)  Realce-se, em particular, a conferência - Partners in competition? The EU, Africa and China - organizada pela Comissão Europeia, em 28 de Junho de 2007, que contou com a participação de mais de 180 decisores políticos, peritos e diplomatas africanos, chineses e europeus.

(9)  Ver conclusões da 2902.a reunião do Conselho (Assuntos Gerais e Relações Externas) de 10 de Novembro de 2008.

(10)  11.a Cimeira UE-China, Praga, 20 de Maio de 2009, comunicado final conjunto.

(11)  Ver o já citado relatório e a resolução do PE, 2008, A6-0080/2008/P6_TA-PROV(2008)0173 – Resolução do PE de 28 de Março, relatora Ana Maria GOMES.

(12)  Ver os debates e as deliberações da 12.a Cimeira da UA, que decorreu de 26 de Janeiro a 3 de Fevereiro de 2009, em Adis Abeba, e cujo tema central era exactamente «O desenvolvimento das infra-estruturas em África», www.africa-union.org

(13)  A. Yaw Baah - H. Jaunch, Chinese investment in Africa, a labour perspective, African Labour Research Network, Maio de 2009, http://www.fnv.nl/binary/report2009_chinese_investments_in_africa_tcm7-23663.pdf

(14)  Ver Tax Justice Network, Breaking the curse: how transparent taxation and fair taxes can turn Africa’s mineral wealth into development, http://www.taxjustice.net/cms/upload/pdf/TJN4Africa_0903_breaking_the_curse_final_text.pdf

(15)  As organizações mencionaram a aquisição, unicamente em 2008, de áreas equivalentes a 7,6 milhões de hectares e de acordos agrícolas celebrados pela China com vários países africanos, http://www.coldiretti.it/docindex/cncd/informazioni/314_09.htm Ver igualmente L. COTULA, S. VERMEULEN, R. LEONARD, J. KEELEY, Land grab or development opportunity? – Agricultural investment and international land deals in Africa, FAO-IFAD-IIED, Maio de 2009..

(16)  JO C 195 de 18.8.2006, p. 104-109, Prioridade à África: O ponto de vista da sociedade civil europeia, relator A. BEDOSSA, Maio de 2006.

(17)  Ver JO C 77 de 31.3.2009, p. 148-156.

(18)  Com apenas 7 % de terras aráveis, a China sustenta 22 % da população mundial, tendo, no essencial, vencido a batalha contra a pobreza extrema, o analfabetismo, as doenças e as epidemias mais devastadoras e reduzido a mortalidade infantil. Segundo Martin Ravallion, Are there lessons for Africa from China’s success against poverty?, The World Bank, Policy Research working paper n.o 4463, Janeiro de 2008, a África poderia extrair ensinamentos importantes a partir de uma análise atenta dos factores de desenvolvimento chinês. Ver anexo 2.

Ver igualmente R. SANDREY, H. EDINGER, The relevance of Chinese agricultural technologies for African smallholder farmers: agricultural technology research in China, Centre for Chinese Studies, Universidade Stellenbosch, Abril de 2009, http://www.ccs.org.za/downloads/CCS%20China%20Agricultural%20Technology%20Research%20Report%20April%202009.pdf

(19)  Paz e segurança; governação democrática e direitos humanos; comércio, integração regional e infra-estruturas; parceria em matéria de Objectivos de Desenvolvimento do Milénio; energia; alterações climáticas; migração, mobilidade e emprego; ciência, sociedade da informação e espaço.

(20)  Ver o n.o 1 do artigo 9.o.

(21)  A este respeito, ver o interessante relatório do Banco Mundial de 2007 intitulado Africa’s Silk Road.

(22)  Ver a este propósito a comunicação Ajudar os países em desenvolvimento a enfrentar a crise, COM(2009) 160 final e o parecer do CESE em fase de elaboração.

(23)  Ver os compromissos assumidos pelo presidente Hu Jintao durante a sua viagem a quatro países africanos (Mali, Senegal, Tanzânia e Maurícia), em meados de Fevereiro de 2009.

(24)  Ver JO C 110 de 9.5.2006, p. 68-74Relações entre a União Europeia e a China: O contributo da sociedade civil, de que foi relator Sukhdev SHARMA, Março de 2006.


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