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Document 62016CJ0003

Acórdão do Tribunal de Justiça (Primeira Secção) de 15 de março de 2017.
Lucio Cesare Aquino contra Belgische Staat.
Pedido de decisão prejudicial apresentado pelo hof van beroep te Brussel.
Reenvio prejudicial — Direito da União — Direitos conferidos aos particulares — Violação por um órgão jurisdicional — Questões prejudiciais — Recurso ao Tribunal de Justiça — Órgão jurisdicional nacional que decide em última instância.
Processo C-3/16.

Court reports – general

ECLI identifier: ECLI:EU:C:2017:209

ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Primeira Secção)

15 de março de 2017 *

«1*Língua do processo: neerlandês.Reenvio prejudicial — Direito da União — Direitos conferidos aos particulares — Violação por um órgão jurisdicional — Questões prejudiciais — Recurso ao Tribunal de Justiça — Órgão jurisdicional nacional que decide em última instância»

No processo C‑3/16,

que tem por objeto um pedido de decisão prejudicial apresentado, nos termos do artigo 267.o TFUE, pelo hof van beroep te Brussel (Tribunal de Recurso de Bruxelas, Bélgica), por decisão de 23 de dezembro de 2015, que deu entrada no Tribunal de Justiça em 4 de janeiro de 2016, no processo

Lucio Cesare Aquino

contra

Belgische Staat,

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Primeira Secção),

composto por: R. Silva de Lapuerta (relatora), presidente de secção, J.‑C. Bonichot, A. Arabadjiev, C. G. Fernlund e S. Rodin, juízes,

advogado‑geral: H. Saugmandsgaard Øe,

secretário: M. Ferreira, administradora principal,

vistos os autos e após a audiência de 23 de novembro de 2016,

vistas as observações apresentadas:

em representação de Lucio Cesare Aquino, por M. Verwilghen e H. Vandenberghe, advocaten,

em representação do Governo belga, por C. Pochet e M. Jacobs, na qualidade de agentes, assistidas por E. Matterne, D. Lindemans e F. Judo, advocaten,

em representação da Comissão Europeia, por J.‑P. Keppenne e H. Kranenborg, na qualidade de agentes,

vista a decisão tomada, ouvido o advogado‑geral, de julgar a causa sem apresentação de conclusões,

profere o presente

Acórdão

1

O pedido de decisão prejudicial tem por objeto a interpretação do artigo 267.o, terceiro parágrafo, TFUE e dos artigos 47.o, segundo parágrafo, e 52.o, n.o 3, da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia (a seguir «Carta»).

2

Este pedido foi apresentado no âmbito de um litígio que opõe Lucio Cesare Aquino ao Belgische Staat (Estado belga) a respeito de um pedido baseado na responsabilidade civil extracontratual.

Quadro jurídico

3

O artigo 18.o do Koninklijk besluit tot vaststelling van de cassatie‑procedure bij de Raad van State (Decreto Real que regula o processo de cassação no Conselho de Estado, em formação jurisdicional), de 30 de novembro de 2006 (Belgisch Staatsblad, 1 de dezembro de 2006, p. 66844), tem a seguinte redação:

«1.   Quando o auditor concluir pela inadmissibilidade ou pela improcedência do recurso, o relatório é notificado pelo secretário principal ao recorrente, o qual dispõe do prazo de trinta dias para pedir o prosseguimento do processo com vista à sua audição.

Quando o recorrente não solicite a sua audição, o secretário principal remete o processo para a Secção para que esta decrete a desistência da instância […]. O relatório do auditor é notificado simultaneamente com o acórdão às partes que ainda não o tiverem recebido.

Se o recorrente solicitar a sua audição, o conselheiro fixa por despacho a data em que as partes deverão comparecer.

O secretário principal informa o teor do presente número aquando da notificação ao recorrente do relatório que conclui pela inadmissibilidade ou pela improcedência do recurso.

2.   Se o auditor não concluir pela inadmissibilidade ou pela improcedência do recurso, o presidente de secção ou o conselheiro em que delegar fixa diretamente por despacho a data da audiência em que o recurso será examinado.»

4

O artigo 21.o, sétimo parágrafo, das gecoördineerde wetten op de Raad van State (Leis Coordenadas relativas ao Conselho de Estado), de 12 de janeiro de 1973 (Belgisch Staatsblad, 21 de março de 1973, p. 3461), na versão aplicável ao processo principal, que se aplica tanto aos recursos de anulação como aos recursos de cassação de decisões dos tribunais administrativos, dispõe:

«Presume‑se a desistência do recorrente da instância quando este não apresente um pedido de prosseguimento do processo no prazo de trinta dias a contar da notificação do relatório do auditor ou da comunicação segundo a qual o artigo 30.o, n.o 1, terceiro parágrafo, é aplicável e na qual é proposta a improcedência ou a declaração de inadmissibilidade do recurso.»

5

O artigo 39/60, segundo parágrafo, da Wet betreffende de toegang tot het grondgebied, het verblijf, de vestiging en de verwijdering van vreemdelingen (Lei sobre o acesso ao território, a permanência, o estabelecimento e o afastamento dos estrangeiros), de 15 de dezembro de 1980 (Belgisch Staatsblad, 31 de dezembro de 1980, p. 14584), na versão aplicável ao litígio no processo principal (a seguir «Lei de 15 de dezembro de 1980»), prevê:

«As partes e o seu advogado podem apresentar oralmente na audiência as suas observações. Só podem ser apresentados os fundamentos expostos na petição inicial ou na nota.»

6

O artigo 39/67 da Lei de 15 de dezembro de 1980 enuncia:

«As decisões do [Raad voor Vreemdelingenbetwistingen (Conselho do Contencioso dos Estrangeiros)] não podem ser objeto de oposição, de oposição de terceiros ou de revisão. Só podem ser objeto do recurso de cassação previsto no artigo 14.o, n.o 2, das Leis Coordenadas relativas ao Conselho de Estado.»

Factos do litígio no processo principal e questões prejudiciais

7

O recorrente no processo principal, que tem nacionalidade italiana, vive na Bélgica desde 1970.

8

Por acórdão do hof van beroep te Antwerpen (Tribunal de Recurso de Antuérpia, Bélgica) de 23 de novembro de 2006, o recorrente no processo principal foi condenado numa pena de sete anos de prisão.

9

Em 9 de novembro de 2011, o recorrente no processo principal apresentou um pedido de inscrição no município de Maasmechelen (Bélgica). Em 23 de fevereiro de 2012, o Dienst Vreemdelingenzaken (Serviço de Estrangeiros, Bélgica) notificou‑o da decisão de indeferimento da autorização de residência com ordem de afastamento do território nacional por razões de ordem pública e de segurança nacional, com data de 22 de fevereiro de 2012 (a seguir «decisão de 22 de fevereiro de 2012»).

10

Em 6 de março de 2012, o recorrente no processo principal interpôs recurso dessa decisão no Raad voor Vreemdelingenbetwistingen (Conselho do Contencioso dos Estrangeiros, Bélgica). Em 15 de maio de 2012, invocando a jurisprudência do Tribunal de Justiça no domínio considerado, o interessado pediu àquele órgão jurisdicional que submetesse uma questão prejudicial destinada à interpretação dos artigos 16.o, n.o 4, e 28.o, n.o 3, alínea c), da Diretiva 2004/38/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 29 de abril de 2004, relativa ao direito de livre circulação e residência dos cidadãos da União e dos membros das suas famílias no território dos Estados‑Membros, que altera o Regulamento (CEE) n.o 1612/68 e que revoga as Diretivas 64/221/CEE, 68/360/CEE, 72/194/CEE, 73/148/CEE, 75/34/CEE, 75/35/CEE, 90/364/CEE, 90/365/CEE e 93/96/CEE (JO 2004, L 158, p. 77, e retificações no JO 2004, L 229, p. 35, e JO 2005, L 197, p. 34).

11

Por acórdão de 24 de agosto de 2012, o Raad voor Vreemdelingenbetwistingen (Conselho do Contencioso dos Estrangeiros) declarou inadmissível o recurso que lhe foi apresentado, dado que o requerimento não indicava qualquer fundamento. Em especial, esse órgão jurisdicional indeferiu o pedido formulado pelo recorrente no processo principal para a submissão de uma questão prejudicial ao Tribunal de Justiça, pelo facto de ter sido apresentado no momento imediatamente anterior à audiência e o interessado não ter indicado nenhum motivo suscetível de demonstrar que o pedido não podia ter sido formulado anteriormente.

12

Em 24 de setembro de 2012, o recorrente no processo principal interpôs recurso desse acórdão no Raad van State (Conselho de Estado, em formação jurisdicional, Bélgica). Depois de o auditor ter concluído pela inadmissibilidade do recurso por falta de fundamentos admissíveis, o interessado não pediu, no prazo previsto, o prosseguimento do processo com vista à sua audição. Por consequência, em 4 de abril de 2013, o Raad van State (Conselho de Estado, em formação jurisdicional) declarou, com fundamento no artigo 21.o, sétimo parágrafo, das Leis Coordenadas do Conselho de Estado, a existência de uma presunção de desistência da instância por parte do recorrente no processo principal.

13

Entretanto, em 27 de junho de 2010, o recorrente no processo principal tinha iniciado um processo no strafuitvoeringsrechtbank van de Nederlandstalige rechtbank van eerste aanleg Brussel (Tribunal de Execução de Penas do Tribunal de Primeira Instância de língua neerlandesa de Bruxelas, Bélgica), para lhe ser aplicada a vigilância eletrónica. Por decisão de 2 de março de 2012, o referido órgão jurisdicional tinha indeferido o pedido. Numa outra decisão, com data de 23 de maio de 2012, esse mesmo órgão jurisdicional tinha igualmente indeferido o pedido do recorrente no processo principal para a concessão de liberdade condicional.

14

O recorrente no processo principal interpôs então recurso desta última decisão no Hof van Cassatie (Tribunal de Cassação, Bélgica). Alegou, nomeadamente, que aquela decisão violava os artigos 16.o e 28.o da Diretiva 2004/38 e pediu que fosse submetida uma questão ao Tribunal de Justiça a esse respeito. Por acórdão de 19 de junho de 2012, aquele órgão jurisdicional negou provimento ao recurso sublinhando que não estava obrigado a desencadear um processo prejudicial no Tribunal de Justiça, dado que os fundamentos apresentados pelo recorrente no processo principal não eram admissíveis por motivos ligados ao próprio processo no Hof van Cassatie (Tribunal de Cassação).

15

O strafuitvoeringsrechtbank van de Nederlandstalige rechtbank van eerste aanleg Brussel (Tribunal de Execução de Penas do Tribunal de Primeira Instância de língua neerlandesa de Bruxelas), por decisão de 21 de novembro de 2012, autorizou a vigilância eletrónica do recorrente no processo principal e, por decisão de 14 de agosto de 2013, concedeu‑lhe a liberdade condicional requerida.

16

Já anteriormente, em 6 de setembro de 2012, o recorrente no processo principal tinha apresentado um novo pedido de inscrição no município de Maasmechelen. Em 22 de abril de 2013, este último concedeu‑lhe uma autorização de residência válida até 3 de abril de 2018.

17

Em 31 de agosto de 2012, o recorrente no processo principal intentou uma ação no Nederlandstalige rechtbank van eerste aanleg Brussel (Tribunal de Primeira Instância de língua neerlandesa de Bruxelas), pedindo que se dignasse:

ordenar ao Estado belga a revogação da decisão de 22 de fevereiro de 2012, pelo facto de essa decisão ser contrária às disposições da Diretiva 2004/38;

declarar que o strafuitvoeringsrechtbank van de Nederlandstalige rechtbank van eerste aanleg Brussel (Tribunal de Execução de Penas do Tribunal de Primeira Instância de língua neerlandesa de Bruxelas), no acórdão que proferiu em 23 de maio de 2012, e o Hof van Cassatie (Tribunal de Cassação), no acórdão que proferiu em 19 de junho de 2012, qualificaram erradamente de «precário» o seu direito de permanência e lhe recusaram, também erradamente, a concessão da liberdade condicional;

condenar o Estado belga no pagamento de uma indemnização, no valor de 25000 euros, por violação do direito da União pelo strafuitvoeringsrechtbank van de Nederlandstalige rechtbank van eerste aanleg Brussel (Tribunal de Execução de Penas do Tribunal de Primeira Instância de língua neerlandesa de Bruxelas), pelo Hof van Cassatie (Tribunal de Cassação) e pelo Raad voor Vreemdelingenbetwistingen (Conselho do Contencioso dos Estrangeiros), pelo facto de esses órgãos jurisdicionais, que decidiram em última instância, terem violado o direito da União e incumprido a obrigação que lhes incumbia de submeterem um pedido prejudicial ao Tribunal de Justiça.

18

Por sentença de 27 de maio de 2013, o Nederlandstalige rechtbank van eerste aanleg Brussel (Tribunal de Primeira Instância de língua neerlandesa de Bruxelas) julgou esse recurso parcialmente inadmissível e parcialmente improcedente. O recorrente no processo principal interpôs então recurso desta sentença para o órgão jurisdicional de reenvio.

19

No que se refere à decisão de 22 de fevereiro de 2012, o hof van beroep te Brussel (Tribunal de Recurso de Bruxelas) declarou que esta se baseava exclusivamente na existência de condenações penais anteriores do recorrente no processo principal, em violação do artigo 27.o, n.o 2, da Diretiva 2004/38. Esse órgão jurisdicional condenou, assim, o Estado belga a pagar ao recorrente o montante de 5000 euros a título de indemnização do dano não patrimonial causado por essa decisão.

20

No que diz respeito ao dano resultante da alegada violação do direito da União pelo Raad voor Vreemdelingenbetwistingen (Conselho do Contencioso dos Estrangeiros), o órgão jurisdicional de reenvio observa que o recorrente no processo principal tinha convidado aquele órgão jurisdicional a submeter uma questão prejudicial ao Tribunal de Justiça num requerimento apresentado fora de prazo e que esse pedido foi indeferido por ser extemporâneo, por decisão de 24 de agosto de 2012. O órgão jurisdicional de reenvio recorda também que o recurso de cassação interposto deste acórdão no Raad van State (Conselho de Estado, em formação jurisdicional) ficou sem efeito por desistência.

21

O hof van beroep te Brussel (Tribunal de Recurso de Bruxelas) declara que a questão que se coloca é, assim, a de saber se estão preenchidos os requisitos para a responsabilização do Estado belga pela atuação de cada um dos três órgãos jurisdicionais mencionados pelo recorrente no processo principal.

22

No que diz respeito ao strafuitvoeringsrechtbank van de Nederlandstalige rechtbank van eerste aanleg Brussel (Tribunal de Execução de Penas do Tribunal de Primeira Instância de língua neerlandesa de Bruxelas), o órgão jurisdicional de reenvio constata que não resulta de nenhuma das peças processuais que o recorrente no processo principal tenha pedido a esse tribunal que submetesse uma questão prejudicial ao Tribunal de Justiça. As sucessivas decisões proferidas por este, todas transitadas em julgado, não foram objeto de nenhum procedimento de impugnação, pelo que o interessado não teria podido sofrer nenhum dano em consequência das mesmas. Portanto, não existe fundamento para responsabilizar o Estado belga pelo exercício da função jurisdicional pelo referido tribunal.

23

Quanto ao Raad voor Vreemdelingenbetwistingen (Conselho do Contencioso dos Estrangeiros), o órgão jurisdicional de reenvio salienta que a decisão de 24 de agosto de 2012 indeferiu o pedido de submissão de uma questão prejudicial ao Tribunal de Justiça pelo facto de esse pedido ter sido apresentado numa peça processual recebida em momento imediatamente anterior à audiência e não ser invocada qualquer razão para demonstrar que o mesmo não poderia ter sido formulado anteriormente.

24

Todavia, o órgão jurisdicional de reenvio faz notar que o recurso interposto dessa decisão para o Raad van State (Conselho de Estado, em formação jurisdicional) não foi analisado quanto ao mérito nem quanto à sua admissibilidade, na medida em que foi declarada a existência de uma presunção legal de desistência da instância pelo recorrente no processo principal, uma vez que não foi pedido o prosseguimento do processo no prazo legal após a notificação do relatório do auditor. Coloca‑se então a questão de saber se, nessas circunstâncias, se deve considerar que a referida decisão emana de um órgão jurisdicional que decide em última instancia, pelo facto de o processo de recurso não ter conduzido a uma apreciação de mérito. Com efeito, o pedido do recorrente no processo principal para que o Raad voor Vreemdelingenbetwistingen (Conselho do Contencioso dos Estrangeiros) submetesse um pedido de decisão prejudicial ao Tribunal de Justiça foi indeferido por ter sido formulado numa peça processual que, em razão da data da sua apresentação, não podia ter sido tomada em consideração.

25

O órgão jurisdicional de reenvio salienta que o Estado belga pode ser responsabilizado por violação do direito da União por eventual erro cometido no exercício da função jurisdicional se estiver em causa uma violação manifesta. A recusa em dar início a um processo prejudicial pode consubstanciar tal violação do direito da União.

26

Segundo o órgão jurisdicional de reenvio, importa determinar se, nas circunstâncias do caso do processo principal, a recusa do Hof van Cassatie (Tribunal de Cassação) em aceder ao pedido de submissão de uma questão prejudicial ao Tribunal de Justiça constitui uma violação do artigo 267.o TFUE, lido à luz dos artigos 47.o, segundo parágrafo, e 52.o, n.o 3, considerados conjuntamente, da Carta.

27

Além disso, o órgão jurisdicional de reenvio interroga‑se sobre se o processo que decorreu no Raad voor Vreemdelingenbetwistingen (Conselho do Contencioso dos Estrangeiros) violou os artigos 47.o, segundo parágrafo, e 52.o, n.o 3, considerados conjuntamente, da Carta, na medida em que declarou que uma regra processual obstava ao deferimento do pedido de submissão de uma questão prejudicial ao Tribunal de Justiça. Com efeito, esse pedido foi indeferido por ter sido formulado numa peça processual que, em razão da data da sua apresentação, não podia ser tida em conta.

28

Por último, subsiste a questão de saber se este indeferimento viola o artigo 267.o TFUE.

29

Nestas circunstâncias, o hof van beroep te Brussel (Tribunal de Recurso de Bruxelas) decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça as seguintes questões prejudiciais:

«1)

Com vista à aplicação da jurisprudência desenvolvida pelo Tribunal de Justiça nos processos Köbler [(acórdão de 30 de setembro de 2003, Köbler, C‑224/01, EU:C:2003:513)] e Traghetti del Mediterraneo [(acórdão de 13 de junho de 2006, Traghetti del Mediterraneo, C‑173/03, EU:C:2006:391)], relativos à responsabilidade do Estado pela atuação ilícita de órgãos jurisdicionais resultante da violação do direito da União, deve considerar‑se como órgão jurisdicional que decide em última instância o órgão jurisdicional cuja decisão não foi apreciada no âmbito de um recurso de cassação porque, em aplicação de uma norma processual nacional, se presume irrevogavelmente que o recorrente, que apresentou alegações no recurso de cassação, desistiu do processo?

2)

É compatível com o artigo 267.o, [terceiro parágrafo], TFUE, igualmente à luz dos artigos 47.o, segundo parágrafo, e 52.o, n.o 3, da [Carta], o facto de um órgão jurisdicional nacional que, nos termos daquela disposição do Tratado, é obrigado a submeter uma questão prejudicial ao Tribunal de Justiça, indeferir um pedido de reenvio prejudicial com o mero fundamento de o pedido ter sido formulado num articulado que, por força da lei processual aplicável, não pode ser tido em conta por ter sido apresentado fora do prazo?

3)

No caso em que o órgão jurisdicional supremo não acolhe um pedido de reenvio prejudicial, deve considerar‑se que tal constitui uma violação do artigo 267.o, terceiro parágrafo, [TFUE], igualmente à luz dos artigos 47.o, segundo parágrafo, e 52.o, n.o 3, da Carta, quando aquele órgão jurisdicional indefere o pedido dando como única razão ‘uma vez que o recurso não é admissível por um motivo inerente ao processo perante o Hof’?»

Quanto às questões prejudiciais

Quanto à primeira questão

30

Com a sua primeira questão, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se o artigo 267.o, terceiro parágrafo, TFUE deve ser interpretado no sentido de que um órgão jurisdicional cujas decisões são suscetíveis de recurso judicial previsto no direito interno pode, no entanto, ser considerado um órgão jurisdicional que decide em última instância, no caso de um recurso de cassação interposto de uma decisão desse órgão não ter sido analisado por desistência do recorrente.

31

A título preliminar, importa recordar que, em conformidade com o artigo 267.o, terceiro parágrafo, TFUE, os órgãos jurisdicionais nacionais cujas decisões não são suscetíveis de recurso judicial previsto no direito interno são obrigados a submeter uma questão ao Tribunal de Justiça (v., neste sentido, acórdão de 6 de outubro de 1982, Cilfit e o., 283/81, EU:C:1982:335, n.o 6).

32

Com efeito, a obrigação de submeter uma questão prejudicial ao Tribunal de Justiça, prevista no artigo 267.o, terceiro parágrafo, TFUE, insere‑se no âmbito da colaboração, instituída com o objetivo de garantir a correta aplicação e a interpretação uniforme do direito da União no conjunto dos Estados‑Membros, entre os órgãos jurisdicionais nacionais, na sua qualidade de juízes incumbidos da aplicação do direito da União, e o Tribunal de Justiça (v., neste sentido, acórdão de 9 de setembro de 2015, X e van Dijk, C‑72/14 e C‑197/14, EU:C:2015:564, n.o 54).

33

Por outro lado, esta obrigação de apresentar uma questão prejudicial, prevista no artigo 267.o, terceiro parágrafo, TFUE, tem como objetivo, nomeadamente, evitar que se estabeleça em qualquer Estado‑Membro uma jurisprudência nacional em desacordo com as regras do direito da União (v., neste sentido, acórdão de 15 de setembro de 2005, Intermodal Transports, C‑495/03, EU:C:2005:552, n.o 29).

34

Como já várias vezes sublinhou o Tribunal de Justiça, um órgão jurisdicional que decide em última instância constitui, por definição, a última instância perante a qual os particulares podem fazer valer os direitos que o direito da União lhes confere. Os órgãos jurisdicionais que decidem em última instância estão encarregados de garantir, à escala nacional, a interpretação conforme às regras de direito (v., neste sentido, acórdãos de 30 de setembro de 2003, Köbler, C‑224/01, EU:C:2003:513, n.o 34, e de 13 de junho de 2006, Traghetti del Mediterraneo, C‑173/03, EU:C:2006:391, n.o 31).

35

A este respeito, resulta dos autos apresentados ao Tribunal de Justiça que, em conformidade com o artigo 39/67 da Lei de 15 de dezembro de 1980, as decisões do Raad voor Vreemdelingenbetwistingen (Conselho do Contencioso dos Estrangeiros) podem ser objeto do recurso de cassação previsto no artigo 14.o, n.o 2, das Leis Coordenadas relativas ao Conselho de Estado.

36

Daqui resulta que o Raad voor Vreemdelingenbetwistingen (Conselho do Contencioso dos Estrangeiros) não pode ser considerado um órgão jurisdicional que decide em última instância, na medida em que as suas decisões são suscetíveis de ser fiscalizadas por uma instância superior, perante a qual os particulares podem fazer valer os direitos que o direito da União lhes confere. Por conseguinte, as decisões que toma não emanam de um órgão jurisdicional nacional cujas decisões não são suscetíveis de recurso judicial previsto no direito interno, na aceção do artigo 267.o, terceiro parágrafo, TFUE.

37

A circunstância de, por força das disposições do artigo 18.o do Decreto Real de 30 de novembro de 2006, que regula o processo de cassação no Conselho de Estado, se considerar que um recorrente que tenha interposto um recurso de cassação de uma decisão do Raad voor Vreemdelingenbetwistingen (Conselho do Contencioso dos Estrangeiros) desiste irrevogavelmente da instância no caso de não ter pedido o prosseguimento do processo no prazo de trinta dias a contar da data em que foi notificado do relatório do auditor que conclui pela inadmissibilidade ou pela improcedência do recurso não tem qualquer influência no facto de as decisões do Raad voor Vreemdelingenbetwistingen (Conselho do Contencioso dos Estrangeiros) poderem ser impugnadas numa instância superior e, por conseguinte, emanarem de um órgão jurisdicional que não decide em última instância.

38

Tendo em conta as considerações precedentes, importa responder à primeira questão que o artigo 267.o, terceiro parágrafo, TFUE deve ser interpretado no sentido de que um órgão jurisdicional cujas decisões são suscetíveis de recurso judicial previsto no direito interno não pode ser considerado um órgão jurisdicional que decide em última instância, no caso de um recurso de cassação interposto de uma decisão desse órgão não ter sido analisado por desistência do recorrente.

Quanto à segunda questão

39

Com a sua segunda questão, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta se o artigo 267.o, terceiro parágrafo, TFUE, lido à luz dos artigos 47.o, segundo parágrafo, e 52.o, n.o 3, da Carta, deve ser interpretado no sentido de que autoriza um órgão jurisdicional a indeferir um pedido de submissão de uma questão prejudicial ao Tribunal de Justiça pela simples razão de que esse pedido foi formulado num articulado que, por força do direito processual aplicável, não pode ser tido em conta por apresentação extemporânea.

40

Uma vez que, como resulta da resposta dada à primeira questão, o Raad voor Vreemdelingenbetwistingen (Conselho do Contencioso dos Estrangeiros) não pode ser considerado um órgão jurisdicional que decide em última instância e que a segunda questão se baseia na premissa inversa, não há que responder à segunda questão.

Quanto à terceira questão

41

Com a sua terceira questão, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se o artigo 267.o, terceiro parágrafo, TFUE deve ser interpretado no sentido de que um órgão jurisdicional que decide em última instância se pode abster de submeter uma questão prejudicial ao Tribunal de Justiça quando deva ser negado provimento a um recurso de cassação por razões de inadmissibilidade que são próprias do processo nesse órgão jurisdicional.

42

A este respeito, há que recordar, em primeiro lugar, que, na medida em que não exista recurso jurisdicional da decisão de um órgão jurisdicional nacional, este está, em princípio, obrigado a questionar o Tribunal de Justiça, na aceção do artigo 267.o, terceiro parágrafo, TFUE, quando lhe seja submetida uma questão relativa à interpretação do Tratado FUE (acórdão de 18 de julho de 2013, Consiglio Nazionale dei Geologi, C‑136/12, EU:C:2013:489, n.o 25).

43

Resulta da conjugação do segundo e terceiro parágrafos do artigo 267.o TFUE que os órgãos jurisdicionais visados pelo referido terceiro parágrafo gozam do mesmo poder de apreciação que quaisquer outros órgãos jurisdicionais nacionais no que se refere à questão de saber se uma decisão sobre uma questão de direito da União é necessária para lhes permitir proferir a sua decisão. Por conseguinte, esses órgãos jurisdicionais não são obrigados a reenviar uma questão de interpretação do direito da União que lhes é submetida se a questão não for relevante, isto é, quando a resposta a essa questão, qualquer que seja, não possa ter influência na solução do litígio (acórdão de 18 de julho de 2013, Consiglio Nazionale dei Geologi, C‑136/12, EU:C:2013:489, n.o 26).

44

Consequentemente, no caso de os fundamentos apresentados perante um órgão jurisdicional previsto no artigo 267.o, terceiro parágrafo, TFUE deverem ser declarados inadmissíveis, em conformidade com as regras processuais do Estado‑Membro em causa, o pedido de decisão prejudicial não pode ser considerado necessário e pertinente para que esse órgão possa proferir a sua decisão.

45

Com efeito, segundo jurisprudência constante do Tribunal de Justiça, a justificação de uma questão prejudicial não é a formulação de opiniões a título consultivo sobre questões gerais ou hipotéticas, mas sim a necessidade inerente à efetiva solução de um litígio (acórdão de 2 de abril de 2009, Elshani, C‑459/07, EU:C:2009:224, n.o 42).

46

No caso vertente, como resulta da decisão de reenvio, o Hof van Cassatie (Tribunal de Cassação) declarou que, dado o caráter inadmissível do recurso interposto da decisão do strafuitvoeringsrechtbank van de Nederlandstalige rechtbank van eerste aanleg Brussel (Tribunal de Execução de Penas do Tribunal de Primeira Instância de língua neerlandesa de Bruxelas) de 23 de maio de 2012, não era pertinente a apresentação de uma questão prejudicial ao Tribunal de Justiça, uma vez que a resposta à mesma não podia ter qualquer influência na resolução do litígio.

47

Acresce que as regras processuais nacionais não podem pôr em causa a competência que resulta do artigo 267.o TFUE para o órgão jurisdicional nacional nem dispensá‑lo das obrigações que lhe incumbem por força desta mesma disposição.

48

A este respeito, há que recordar que, em conformidade com jurisprudência constante do Tribunal de Justiça, na falta de regras da União na matéria, cabe à ordem jurídica interna de cada Estado‑Membro estabelecer as modalidades processuais de recurso à justiça para salvaguarda dos direitos dos particulares, por força do princípio da autonomia processual, desde que, no entanto, não sejam menos favoráveis do que as que regulam situações semelhantes sujeitas ao direito interno (princípio da equivalência) e não tornem impossível, na prática, ou excessivamente difícil o exercício dos direitos conferidos pelo direito da União (princípio da efetividade) (acórdão de 17 de março de 2016, Bensada Benallal, C‑161/15, EU:C:2016:175, n.o 24 e jurisprudência referida).

49

Daqui decorre que devem estar reunidas duas condições cumulativas, a saber, o respeito pelos princípios da equivalência e da efetividade, para que um Estado‑Membro possa invocar o princípio da autonomia processual em situações regidas pelo direito da União (acórdão de 17 de março de 2016, Bensada Benallal, C‑161/15, EU:C:2016:175, n.o 25).

50

Por um lado, no que diz respeito ao princípio da equivalência, importa recordar que este princípio exige que a totalidade das regras aplicáveis às ações ou recursos se aplique indiferentemente às ações ou recursos baseados na violação do direito da União e às ações ou recursos semelhantes, baseados na violação do direito interno (v., neste sentido, acórdãos de 16 de janeiro de 2014, Pohl, C‑429/12, EU:C:2014:12, n.o 26, e de 20 de outubro de 2016, Danqua, C‑429/15, EU:C:2016:789, n.o 30).

51

No caso em apreço, há que salientar que o Tribunal de Justiça não dispõe de nenhum elemento que permita duvidar da conformidade deste princípio com as regras processuais em causa no processo principal.

52

Por outro lado, quanto ao princípio da efetividade, uma regra processual nacional como a que está em causa no processo principal não deve tornar impossível, na prática, ou excessivamente difícil o exercício dos direitos conferidos pela ordem jurídica da União (acórdão de 20 de outubro de 2016, Danqua, C‑429/15, EU:C:2016:789, n.o 29).

53

Importa ainda recordar que resulta da jurisprudência do Tribunal de Justiça que cada caso em que se coloque a questão de saber se uma disposição processual nacional torna impossível ou excessivamente difícil o exercício dos direitos conferidos aos particulares pela ordem jurídica da União deve ser analisado tendo em conta o lugar que essa disposição ocupa no processo visto como um todo, a tramitação deste e as suas particularidades perante as várias instâncias nacionais. Nesta perspetiva, há que tomar em consideração, se necessário, os princípios subjacentes ao sistema jurisdicional nacional, como a proteção dos direitos de defesa, o princípio da segurança jurídica e o da economia processual (acórdão de 21 de fevereiro de 2008, Tele2 Telecommunication, C‑426/05, EU:C:2008:103, n.o 55).

54

No caso em apreço, resulta do pedido de decisão prejudicial e das observações das partes que o Hof van Cassatie (Tribunal de Cassação) declarou inadmissíveis, ao abrigo de normas processuais internas, os fundamentos apresentados pelo recorrente no processo principal em apoio do recurso que interpôs contra a decisão do strafuitvoeringsrechtbank van de Nederlandstalige rechtbank van eerste aanleg Brussel (Tribunal de Execução de Penas do Tribunal de Primeira Instância de língua neerlandesa de Bruxelas) de 23 de maio de 2012, pelo facto de que, apesar de o interessado ter impugnado, com estes fundamentos, um dos elementos desfavoráveis utilizados por esse órgão jurisdicional para indeferir o seu pedido de liberdade condicional, bastavam os outros elementos desfavoráveis utilizados pelo referido órgão jurisdicional para justificar esta decisão.

55

Por conseguinte, não se afigura que a legislação nacional em causa no processo principal seja suscetível de tornar, na prática, impossível ou excessivamente difícil o exercício dos direitos conferidos pela ordem jurídica da União.

56

Tendo em conta estas considerações, há que responder à terceira questão que o artigo 267.o, terceiro parágrafo, TFUE deve ser interpretado no sentido de que um órgão jurisdicional que decide em última instância se pode abster de submeter uma questão prejudicial ao Tribunal de Justiça quando seja negado provimento a um recurso de cassação por razões de inadmissibilidade que são próprias do processo nesse órgão jurisdicional, sem prejuízo do respeito pelos princípios da equivalência e da efetividade.

Quanto às despesas

57

Revestindo o processo, quanto às partes na causa principal, a natureza de incidente suscitado perante o órgão jurisdicional de reenvio, compete a este decidir quanto às despesas. As despesas efetuadas pelas outras partes para a apresentação de observações ao Tribunal de Justiça não são reembolsáveis.

 

Pelos fundamentos expostos, o Tribunal de Justiça (Primeira Secção) declara:

 

1)

O artigo 267.o, terceiro parágrafo, TFUE deve ser interpretado no sentido de que um órgão jurisdicional cujas decisões são suscetíveis de recurso judicial previsto no direito interno não pode ser considerado um órgão jurisdicional que decide em última instância, no caso de um recurso de cassação interposto de uma decisão desse órgão não ter sido analisado por desistência do recorrente.

 

2)

Não há que responder à segunda questão.

 

3)

O artigo 267.o, terceiro parágrafo, TFUE deve ser interpretado no sentido de que um órgão jurisdicional que decide em última instância se pode abster de submeter uma questão prejudicial ao Tribunal de Justiça quando seja negado provimento a um recurso de cassação por razões de inadmissibilidade que são próprias do processo nesse órgão jurisdicional, sem prejuízo do respeito pelos princípios da equivalência e da efetividade.

 

Assinaturas

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