EUR-Lex Acesso ao direito da União Europeia

Voltar à página inicial do EUR-Lex

Este documento é um excerto do sítio EUR-Lex

Documento 62021CJ0430

Acórdão do Tribunal de Justiça (Grande Secção) de 22 de fevereiro de 2022.
Processo instaurado por RS.
Pedido de decisão prejudicial apresentado pela Curtea de Apel Craiova.
Reenvio prejudicial — Estado de direito — Independência do poder judicial — Artigo 19.o, n.o 1, segundo parágrafo, TUE — Artigo 47.o da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia — Primado do direito da União — Falta de habilitação de um órgão jurisdicional nacional para examinar a conformidade com o direito da União de uma legislação nacional declarada conforme com a Constituição pelo tribunal constitucional do Estado‑Membro em causa — Procedimentos disciplinares.
Processo C-430/21.

Coletânea da Jurisprudência — Coletânea Geral — Parte «Informações sobre as decisões não publicadas»

Identificador Europeu da Jurisprudência (ECLI): ECLI:EU:C:2022:99

 ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Grande Secção)

22 de fevereiro de 2022 ( *1 )

«Reenvio prejudicial — Estado de direito — Independência do poder judicial — Artigo 19.o, n.o 1, segundo parágrafo, TUE — Artigo 47.o da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia — Primado do direito da União — Falta de habilitação de um órgão jurisdicional nacional para examinar a conformidade com o direito da União de uma legislação nacional declarada conforme com a Constituição pelo tribunal constitucional do Estado‑Membro em causa — Procedimentos disciplinares»

No processo C‑430/21,

que tem por objeto um pedido de decisão prejudicial apresentado, nos termos do artigo 267.o TFUE, pela Curtea de Apel Craiova (Tribunal de Recurso de Craiova, Roménia), por Decisão de 7 de julho de 2021, que deu entrada no Tribunal de Justiça em 14 de julho de 2021, no processo instaurado por

RS,

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Grande Secção),

composto por: K. Lenaerts, presidente, L. Bay Larsen (relator), vice‑presidente, A. Arabadjiev, C. Lycourgos, E. Regan, S. Rodin, I. Ziemele e J. Passer, presidentes de secção, F. Biltgen, P. G. Xuereb, N. Piçarra, L. S. Rossi, N. Wahl, D. Gratsias e M. L. Arastey Sahún, juízes,

advogado‑geral: A. M. Collins,

secretário: C. Di Bella, administrador,

vistos os autos e após a audiência de 23 de novembro de 2021,

vistas as observações apresentadas:

em representação do Governo romeno, por E. Gane, L. Liţu e L.‑E. Baţagoi, na qualidade de agentes, assistidas por M. Manolache,

em representação do Governo belga, por L. Van den Broeck, M. Jacobs e C. Pochet, na qualidade de agentes,

em representação do Governo neerlandês, por M. K. Bulterman e J. Langer, na qualidade de agentes,

em representação da Comissão Europeia, por P. J. O. Van Nuffel, I. Rogalski e K. Herrmann, na qualidade de agentes,

ouvidas as conclusões do advogado‑geral na audiência de 20 de janeiro de 2022,

profere o presente

Acórdão

1

O pedido de decisão prejudicial tem por objeto a interpretação do artigo 2.o e do artigo 19.o, n.o 1, segundo parágrafo, TUE, bem como do artigo 47.o da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia (a seguir «Carta»).

2

Este pedido foi apresentado no âmbito de uma ação intentada por RS para contestar a duração do tratamento de processos penais instaurados na sequência de uma queixa apresentada pela sua mulher.

Quadro jurídico

Constituição romena

3

O artigo 148.o, n.os 2 e 4, da Constituția României (Constituição romena) prevê:

«(2)   Na sequência da adesão, as disposições dos Tratados constitutivos da União Europeia e as outras regulamentações comunitárias vinculativas prevalecem sobre as disposições em contrário da legislação nacional, em conformidade com o disposto no Ato de Adesão.

[…]

(4)   O Parlamento, o Presidente da Roménia, o Governo e a autoridade judiciária garantem o cumprimento das obrigações decorrentes do Ato de Adesão e do disposto no n.o 2.»

Código de Processo Penal

4

O artigo 4881 do codul do procedură penală (Código de Processo Penal) prevê que pode ser apresentada uma contestação com vista a pedir a aceleração de um processo penal pelo menos um ano após o início da instrução penal nos processos que se encontrem nessa fase.

5

O juiz responsável por processos em matéria de direitos e liberdades ou o órgão jurisdicional competente deve, em aplicação do artigo 4885 deste código, apreciar o caráter razoável da duração da instrução penal, tendo em conta uma série de elementos enunciados nessa disposição.

6

O artigo 4886, n.o 1, do referido código prevê que, quando considerar a contestação fundada, o juiz responsável por processos em matéria de direitos e liberdades fixa o prazo em que o procurador se deverá pronunciar sobre o processo.

Lei n.o 303/2004

7

O artigo 99.o, alínea ș), da Legea nr. 303/2004 privind statutul judecătorilor și procurorilor (Lei n.o 303/2004 relativa ao Estatuto dos Juízes e dos Procuradores), de 28 de junho de 2004 (Monitorul Oficial al României, parte I, n.o 826, de 13 de setembro de 2005), na sua versão aplicável ao processo principal (a seguir «Lei n.o 303/2004»), enuncia, nomeadamente, que o incumprimento dos acórdãos da Curtea Constituțională (Tribunal Constitucional, Roménia) constitui uma infração disciplinar.

Processo principal e questões prejudiciais

8

RS foi objeto de um processo penal no termo do qual foi condenado.

9

Em 1 de abril de 2020, a esposa de RS apresentou uma queixa‑crime na qual denunciava, nomeadamente, crimes de repressão ilícita e de abuso no exercício de funções praticados, no âmbito desse processo penal, por um procurador e por dois juízes.

10

Uma vez que a referida queixa visa nomeadamente magistrados, a sua apreciação é da competência da Secția pentru Investigarea Infracțiunilor din Justiție (Secção de inquéritos relativos a infrações cometidas no sistema judiciário, a seguir «SIIJ»), instituída no Parchetul de pe lângă Înalta Curte de Casaţie şi Justiţie (Secção do Ministério Público junto do Tribunal Superior de Cassação e Justiça, Roménia). Por Despacho de 14 de abril de 2020, um procurador da SIIJ deu início à instrução de um processo penal contra os magistrados visados na referida queixa por crimes de repressão ilícita e de abuso no exercício de funções.

11

Em 10 de junho de 2021, RS intentou uma ação no órgão jurisdicional de reenvio, prevista nos artigos 4881 e seguintes do Código de Processo Penal, destinada a contestar o caráter excessivo da duração da instrução dos processos penais instaurados na sequência da referida queixa e a obter a fixação, por esse órgão jurisdicional, de um prazo dentro do qual o procurador a quem foi apresentada a queixa deveria pronunciar‑se.

12

O órgão jurisdicional de reenvio considera que, para conhecer desta ação, deve examinar a legislação nacional que instituiu a SIIJ.

13

Ora, o órgão jurisdicional de reenvio salienta que o Tribunal de Justiça já se pronunciou sobre questões relativas a esta legislação nacional no Acórdão de 18 de maio de 2021, Asociaţia Forumul Judecătorilor Din România e o. (C‑83/19, C‑127/19, C‑195/19, C‑291/19, C‑355/19 e C‑397/19, EU:C:2021:393).

14

O órgão jurisdicional de reenvio sublinha que resulta nomeadamente desse acórdão que o direito da União, em especial o artigo 2.o e o artigo 19.o, n.o 1, segundo parágrafo, TUE, deve ser interpretado no sentido de que se opõe a uma regulamentação nacional que prevê a criação de uma secção especializada do Ministério Público com competência exclusiva para investigar as infrações cometidas pelos juízes e pelos procuradores, sem que a criação dessa secção seja justificada por imperativos objetivos e verificáveis decorrentes da boa administração da justiça e seja acompanhada de garantias específicas. Estas garantias devem permitir, por um lado, excluir qualquer risco de que a secção em causa seja utilizada como um instrumento de controlo político da atividade desses juízes e procuradores, suscetível de prejudicar a sua independência e, por outro, garantir que essa competência possa ser exercida em relação a estes últimos no pleno respeito das exigências decorrentes dos artigos 47.o e 48.o da Carta.

15

O órgão jurisdicional de reenvio salienta, além disso, que, no n.o 7 do dispositivo do referido acórdão, o Tribunal de Justiça declarou que o princípio do primado do direito da União deve ser interpretado no sentido de que se opõe a uma regulamentação de grau constitucional de um Estado‑Membro, conforme interpretada pelo seu tribunal constitucional, segundo a qual um órgão jurisdicional de grau inferior não está autorizado a deixar de aplicar, por iniciativa própria, uma disposição nacional abrangida pelo âmbito de aplicação da Decisão 2006/928/CE da Comissão, de 13 de dezembro de 2006, que estabelece um mecanismo de cooperação e de verificação dos progressos realizados na Roménia relativamente a objetivos de referência específicos nos domínios da reforma judiciária e da luta contra a corrupção e a criminalidade organizada (JO 2006, L 354, p. 56), e que, à luz de um acórdão do Tribunal de Justiça, tal órgão jurisdicional considere contrária a esta decisão ou ao artigo 19.o, n.o 1, segundo parágrafo, TUE.

16

O órgão jurisdicional de reenvio refere‑se, mais amplamente, à jurisprudência constante do Tribunal de Justiça segundo a qual qualquer juiz nacional tem a obrigação de não aplicar, no litígio que lhe foi submetido, qualquer disposição nacional contrária a uma disposição de direito da União que tenha efeito direto, bem como ao caráter vinculativo dos acórdãos proferidos a título prejudicial pelo Tribunal de Justiça.

17

A este respeito, o órgão jurisdicional de reenvio precisa que o artigo 148.o, n.os 2 e 4, da Constituição romena, prevê o primado das regras de direito da União.

18

No entanto, esse órgão jurisdicional salienta que, através do Acórdão n.o 390/2021, de 8 de junho de 2021, a Curtea Constituțională (Tribunal Constitucional) julgou improcedente uma exceção de inconstitucionalidade suscitada relativamente a várias disposições da legislação que regem a SIIJ.

19

Nesse acórdão, a Curtea Constituțională (Tribunal Constitucional) precisou, nomeadamente, antes de mais, que, na medida em que o primado reconhecido ao direito da União é limitado, na ordem jurídica romena, pela exigência de respeito da identidade constitucional nacional, cabia‑lhe assegurar a supremacia da Constituição romena em território romeno. Consequentemente, considerou que, embora um órgão jurisdicional comum esteja habilitado a examinar a conformidade com o direito da União de uma disposição da legislação nacional, esse órgão jurisdicional não está habilitado a examinar a conformidade com o direito da União de uma disposição nacional que foi declarada conforme com o artigo 148.o da Constituição romena pela Curtea Constituțională (Tribunal Constitucional).

20

Acresce que, segundo a Curtea Constituțională (Tribunal Constitucional), o n.o 7 do dispositivo do Acórdão de 18 de maio de 2021, Asociaţia Forumul Judecătorilor Din România e o. (C‑83/19, C‑127/19, C‑195/19, C‑291/19, C‑355/19 e C‑397/19, EU:C:2021:393), não tem fundamento no que respeita à Constituição romena. Com efeito, embora o artigo 148.o da referida Constituição consagre o primado do direito da União sobre as disposições contrárias da legislação nacional, as relações estabelecidas em aplicação da Decisão 2006/928, em virtude do seu conteúdo e efeitos, não constituem regras de direito da União que o juiz nacional deva aplicar com prioridade, afastando a regra nacional contrária.

21

Por último, a Curtea Constituțională (Tribunal Constitucional) precisou nesse mesmo Acórdão n.o 390/2021, de 8 de junho de 2021, que, se por iniciativa própria alguns órgãos jurisdicionais deixassem de aplicar disposições nacionais que consideram contrárias ao direito da União, ao passo que outros as aplicariam considerando‑as conformes com esse direito, a segurança jurídica seria seriamente afetada, o que implicaria uma violação do princípio do Estado de direito.

22

Neste contexto, o órgão jurisdicional de reenvio considera que tem de determinar se lhe incumbe agir em conformidade com a jurisprudência da Curtea Constituțională (Tribunal Constitucional), como prevê o direito romeno, ou com a do Tribunal de Justiça, para decidir se está habilitado a examinar a conformidade da legislação que instituiu a SIIJ com o direito da União.

23

Além disso, o órgão jurisdicional de reenvio salienta que, na hipótese de decidir atuar em conformidade com a jurisprudência do Tribunal de Justiça, ao apreciar a compatibilidade dessa legislação com o direito da União, os juízes em causa expor‑se‑iam a um processo disciplinar e a uma eventual suspensão das suas funções, uma vez que o incumprimento de uma decisão da Curtea Constituțională (Tribunal Constitucional) constitui, segundo o direito romeno, uma infração disciplinar. O órgão jurisdicional de reenvio tem dúvidas sobre a compatibilidade com o direito da União, em particular com o princípio da independência dos juízes, de uma legislação nacional que permite aplicar sanções disciplinares contra um juiz que, por força do princípio do primado do direito da União, analisou a conformidade de uma disposição nacional com esse direito, contrariando uma decisão do tribunal constitucional do Estado‑Membro em causa.

24

Por outro lado, resulta de informações surgidas na imprensa e de dados disponíveis na Curtea de Apel Pitești (Tribunal de Recurso de Pitești, Roménia) que já foi instaurado um processo disciplinar contra um juiz que considerou, no âmbito de um litígio comparável ao que está em causa no processo principal, que a legislação romena que instituiu a SIIJ é contrária ao direito da União. Ora, segundo o órgão jurisdicional de reenvio, a compatibilidade de tal processo disciplinar com o direito da União suscita dúvidas.

25

Nestas circunstâncias, a Curtea de Apel Craiova (Tribunal de Recurso de Craiova, Roménia) decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça as seguintes questões prejudiciais:

«1)

O princípio da independência dos juízes, consagrado no artigo 19.o, n.o 1, segundo parágrafo, TUE, em conjugação com o artigo 2.o TUE e com o artigo 47.o da [Carta], opõe‑se a uma disposição nacional, como a do artigo 148.o, n.o 2, da Constituição da Roménia, tal como interpretada pela Curtea Constituțională (Tribunal Constitucional) na sua Decisão n.o 390/2021, [de 8 de junho de 2021,] segundo a qual os juízes nacionais não podem examinar a conformidade com as disposições do direito da União Europeia de uma disposição nacional declarada constitucional por uma decisão da Curtea Constituțională?

2)

O princípio da independência dos juízes, consagrado no artigo 19.o, n.o 1, segundo parágrafo, TUE, em conjugação com o artigo 2.o TUE e com o artigo 47.o da [Carta], opõe‑se a uma disposição nacional, como a do artigo 99.o, alínea ș), da [Lei n.o 303/2004], que permite a instauração de um processo disciplinar e a aplicação de sanções disciplinares a um juiz pela inobservância de um acórdão da Curtea Constituțională (Tribunal Constitucional), quando o juiz seja chamado a estabelecer o primado da aplicação do direito da União Europeia, face aos considerandos de uma decisão da Curtea Constituțională, disposição nacional que proíbe o juiz de aplicar um acórdão do Tribunal de Justiça […] e ao qual esse juiz reconhece o primado?

3)

O princípio da independência dos juízes, consagrado no artigo 19.o, n.o 1, segundo parágrafo, TUE, em conjugação com o artigo 2.o TUE e com o artigo 47.o da [Carta], opõe‑se às práticas judiciais nacionais que proíbem esse juiz, sob pena de sanções disciplinares, de aplicar a jurisprudência do Tribunal de Justiça […] em processos penais como a reclamação relativa à duração razoável do processo penal, regulada pelo artigo 4881 do [Código de Processo Penal]?»

Quanto à tramitação do processo no Tribunal de Justiça

26

O órgão jurisdicional de reenvio pediu ao Tribunal de Justiça que o presente reenvio prejudicial fosse submetido a tramitação prejudicial urgente ou, a título subsidiário, a tramitação acelerada, previstas no artigo 23.o‑A do Estatuto do Tribunal de Justiça da União Europeia.

27

Em apoio deste pedido, o órgão jurisdicional de reenvio alegou que o processo que está na origem do presente reenvio prejudicial diz respeito a uma violação grave da independência dos órgãos jurisdicionais romenos e que as incertezas ligadas à legislação nacional em causa no processo principal são suscetíveis incidir no funcionamento do sistema de cooperação judiciária constituído pelo mecanismo do reenvio prejudicial previsto no artigo 267.o TFUE.

28

Em primeiro lugar, o pedido de aplicação da tramitação prejudicial urgente foi indeferido pela Primeira Secção do Tribunal de Justiça por Decisão de 30 de julho de 2021, sob proposta do juiz‑relator, ouvido o advogado‑geral.

29

No que toca, em segundo lugar, ao pedido de aplicação da tramitação acelerada, importa recordar que o artigo 105.o, n.o 1, do Regulamento de Processo do Tribunal de Justiça prevê que, a pedido do órgão jurisdicional de reenvio ou, a título excecional, oficiosamente, o presidente do Tribunal pode, quando a natureza do processo exija o seu tratamento dentro de prazos curtos, ouvidos o juiz‑relator e o advogado‑geral, decidir submeter um reenvio prejudicial a tramitação acelerada.

30

Em 12 de agosto de 2021, o presidente do Tribunal de Justiça decidiu, ouvidos o juiz‑relator e o advogado‑geral, deferir o pedido de tramitação acelerada do presente reenvio prejudicial.

31

Com efeito, quando um processo suscita graves incertezas que dizem respeito a questões fundamentais de direito constitucional nacional e de direito da União, pode ser necessário, tendo em conta as circunstâncias particulares desse processo, examiná‑lo em prazos curtos, em conformidade com o artigo 105.o, n.o 1, do Regulamento de Processo (Despacho do presidente do Tribunal de Justiça de 19 de outubro de 2018, Wightman e o., C‑621/18, não publicado, EU:C:2018:851, n.o 10 e jurisprudência referida).

32

Ora, tendo em conta a importância fundamental, para a Roménia e para a ordem jurídica da União, das questões relativas às relações entre os órgãos jurisdicionais comuns e o tribunal constitucional desse Estado‑Membro, bem como o princípio da independência dos juízes e o primado do direito da União que o presente processo suscita, uma resposta do Tribunal de Justiça num curto espaço de tempo é suscetível de eliminar as graves incertezas a que o órgão jurisdicional de reenvio faz face, circunstância que justifica o tratamento deste processo nas condições definidas no artigo 105.o, n.o 1, do Regulamento de Processo.

Quanto às questões prejudiciais

Quanto à primeira questão

33

Com a sua primeira questão, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se o artigo 19.o, n.o 1, segundo parágrafo, TUE, lido em conjugação com o artigo 2.o TUE e com o artigo 47.o da Carta, deve ser interpretado no sentido de que se opõe a uma regulamentação ou a uma prática nacional que implique que os órgãos jurisdicionais comuns de um Estado‑Membro não estão habilitados a examinar a compatibilidade com o direito da União de uma legislação nacional que o tribunal constitucional desse Estado‑Membro declarou conforme com uma disposição constitucional nacional que impõe o respeito do princípio do primado do direito da União.

34

A título liminar, na medida em que a primeira questão respeita à interpretação do artigo 47.o da Carta, importa sublinhar que o reconhecimento do direito à ação, num determinado caso, pressupõe que a pessoa que o invoca se baseie em direitos ou liberdades garantidos pelo direito da União [v., neste sentido, Acórdãos de 6 de outubro de 2020, Estado luxemburguês (Direito de recurso contra um pedido de informação em matéria fiscal), C‑245/19 e C‑246/19, EU:C:2020:795, n.o 55, e de 20 de abril de 2021, Repubblika, C‑896/19, EU:C:2021:311, n.o 41] ou que essa pessoa seja objeto de procedimentos que constituem uma aplicação do direito da União, no sentido do artigo 51.o, n.o 1, da Carta (v., neste sentido, Acórdão de 21 de dezembro de 2021, Euro Box Promotion e o., C‑357/19, C‑379/19, C‑547/19, C‑811/19 e C‑840/19, EU:C:2021:1034, n.o 204).

35

Ora, não resulta da decisão de reenvio que RS invoque um direito de que esteja investido ao abrigo de uma disposição do direito da União, nem que seja objeto de um procedimento que constitua uma aplicação do direito da União.

36

Nestas condições, o artigo 47.o da Carta não é, enquanto tal, aplicável ao processo principal.

37

Contudo, uma vez que o artigo 19.o, n.o 1, segundo parágrafo, TUE impõe a todos os Estados‑Membros que estabeleçam as vias de recurso necessárias para assegurar, nos domínios abrangidos pelo direito da União, uma tutela jurisdicional efetiva, na aceção, nomeadamente, do artigo 47.o da Carta, esta última disposição deve ser devidamente tomada em conta para efeitos da interpretação do artigo 19.o, n.o 1, segundo parágrafo, TUE (Acórdão de 20 de abril de 2021, Repubblika, C‑896/19, EU:C:2021:311, n.o 45 e jurisprudência referida).

38

No que toca às relações entre os órgãos jurisdicionais comuns e o tribunal constitucional de um Estado‑Membro, que constituem o objeto da primeira questão, cabe recordar que, embora a organização da justiça nos Estados‑Membros, incluindo o estabelecimento, a composição e o funcionamento de um tribunal constitucional, seja da competência destes últimos, no exercício dessa competência os Estados‑Membros não deixam de estar vinculados a respeitar as obrigações que para eles decorrem do direito da União e, em particular, dos artigos 2.o e 19.o TUE [v., neste sentido, Acórdãos de 24 de junho de 2019, Comissão/Polónia (Independência do Supremo Tribunal), C‑619/18, EU:C:2019:531, n.o 52, e de 21 de dezembro de 2021, Euro Box Promotion e o., C‑357/19, C‑379/19, C‑547/19, C‑811/19 e C‑840/19, EU:C:2021:1034, n.o 216].

39

Quanto às obrigações decorrentes do artigo 19.o TUE, importa sublinhar que esta disposição, que concretiza o valor do Estado de direito afirmado no artigo 2.o TUE, confia aos tribunais nacionais e ao Tribunal de Justiça o ónus de garantir a plena aplicação do direito da União em todos os Estados‑Membros, bem como a proteção jurisdicional que este direito confere aos particulares [Acórdãos de 24 de junho de 2019, Comissão/Polónia (Independência do Supremo Tribunal), C‑619/18, EU:C:2019:531, n.o 47, e de 21 de dezembro de 2021, Euro Box Promotion e o., C‑357/19, C‑379/19, C‑547/19, C‑811/19 e C‑840/19, EU:C:2021:1034, n.o 217].

40

Em conformidade com jurisprudência constante, para garantir esta proteção, todos os Estados‑Membros devem, em virtude do artigo 19.o, n.o 1, segundo parágrafo, TUE, assegurar que as instâncias que, enquanto «órgãos jurisdicionais» no sentido definido pelo direito da União, são chamadas a pronunciar‑se sobre questões relacionadas com a aplicação ou a interpretação desse direito e que fazem parte do seu sistema de vias de recurso nos domínios abrangidos pelo direito da União, satisfazem as exigências de uma tutela jurisdicional efetiva, nomeadamente em matéria de independência (v., neste sentido, Acórdão de 21 de dezembro de 2021, Euro Box Promotion e o., C‑357/19, C‑379/19, C‑547/19, C‑811/19 e C‑840/19, EU:C:2021:1034, n.os 220, 221 e jurisprudência referida).

41

A exigência de independência dos tribunais que decorre do artigo 19.o, n.o 1, segundo parágrafo, TUE, comporta dois aspetos. O primeiro aspeto, de ordem externa, requer que a instância em causa exerça as suas funções com total autonomia, sem estar sujeita a nenhum vínculo hierárquico ou de subordinação em relação a nenhuma entidade e sem receber ordens ou instruções de nenhuma proveniência, estando assim protegida contra intervenções ou pressões externas suscetíveis de afetar a independência de julgamento dos seus membros e influenciar as suas decisões. O segundo aspeto, de natureza interna, está relacionado com a noção de imparcialidade e é relativo à equidistância em relação às partes em litígio e aos seus respetivos interesses no que diz respeito ao objeto do litígio. Este último aspeto requer o respeito da objetividade e a inexistência de qualquer interesse na solução do litígio além da estrita aplicação do direito [v., neste sentido, Acórdãos de 24 de junho de 2019, Comissão/Polónia (Independência do Supremo Tribunal), C‑619/18, EU:C:2019:531, n.os 72 e 73, e de 21 de dezembro de 2021, Euro Box Promotion e o., C‑357/19, C‑379/19, C‑547/19, C‑811/19 e C‑840/19, EU:C:2021:1034, n.o 224].

42

Em conformidade com o princípio da separação de poderes que caracteriza o funcionamento de um Estado de direito, a independência dos órgãos jurisdicionais deve ser garantida face aos poderes legislativo e executivo [Acórdãos de 19 de novembro de 2019, A. K. e o. (Independência da Secção Disciplinar do Supremo Tribunal), C‑585/18, C‑624/18 e C‑625/18, EU:C:2019:982, n.o 124, e de 21 de dezembro de 2021, Euro Box Promotion e o., C‑357/19, C‑379/19, C‑547/19, C‑811/19 e C‑840/19, EU:C:2021:1034, n.o 228].

43

Ora, à semelhança do que foi recordado no n.o 38 do presente acórdão, no que respeita à organização da justiça, nem o artigo 2.o e o artigo 19.o, n.o 1, segundo parágrafo, TUE, nem nenhuma outra disposição do direito da União impõem aos Estados‑Membros um modelo constitucional preciso que regule as relações e a interação entre os diferentes poderes estatais, nomeadamente quanto à definição e à delimitação das suas competências. Com efeito, em virtude do artigo 4.o, n.o 2, TUE, a União respeita a identidade nacional dos Estados‑Membros, refletida nas estruturas políticas e constitucionais fundamentais de cada um deles. Todavia, na escolha do respetivo modelo constitucional, os Estados‑Membros são obrigados a respeitar, nomeadamente, a exigência de independência dos órgãos jurisdicionais que decorre destas disposições do direito da União (v., neste sentido, Acórdão de 21 de dezembro de 2021, Euro Box Promotion e o., C‑357/19, C‑379/19, C‑547/19, C‑811/19 e C‑840/19, EU:C:2021:1034, n.o 229 e jurisprudência referida).

44

Nestas condições, o artigo 2.o e o artigo 19.o, n.o 1, segundo parágrafo, TUE, bem como a Decisão 2006/928, não se opõem a uma regulamentação ou a uma prática nacional segundo a qual as decisões do tribunal constitucional vinculam os órgãos jurisdicionais comuns, desde que o direito nacional garanta a independência do referido tribunal constitucional, nomeadamente em relação aos poderes legislativo e executivo, conforme exigido por essas disposições. Em contrapartida, se o direito nacional não garantir essa independência, estas disposições do direito da União opõem‑se a tal regulamentação ou prática nacional, uma vez que esse tribunal constitucional não está em condições de assegurar a tutela jurisdicional efetiva exigida pelo artigo 19.o, n.o 1, segundo parágrafo, TUE (v., neste sentido, Acórdão de 21 de dezembro de 2021, Euro Box Promotion e o., C‑357/19, C‑379/19, C‑547/19, C‑811/19 e C‑840/19, EU:C:2021:1034, n.o 230).

45

Decorre do exposto que, sem prejuízo da reserva expressa no número anterior, o artigo 19.o, n.o 1, segundo parágrafo, TUE não se opõe a uma regulamentação ou a uma prática nacional que preveja que os órgãos jurisdicionais comuns de um Estado‑Membro, por força do direito constitucional nacional, estão vinculados por uma decisão do tribunal constitucional desse Estado‑Membro que declare uma legislação nacional conforme com a Constituição do referido Estado‑Membro.

46

Não obstante, o mesmo não se pode dizer de um caso em que a aplicação de tal regulamentação ou prática implica excluir toda e qualquer competência desses órgãos jurisdicionais comuns para apreciar a compatibilidade com o direito da União de uma legislação nacional que o tribunal constitucional desse Estado‑Membro declarou conforme com uma disposição constitucional nacional que prevê o primado do direito da União.

47

Com efeito, na sua jurisprudência constante relativa ao Tratado CEE, o Tribunal de Justiça declarou que os Tratados comunitários, diferentemente dos tratados internacionais ordinários, instituíram uma nova ordem jurídica própria, integrada no sistema jurídico dos Estados‑Membros aquando da entrada em vigor dos Tratados e que se impõe aos seus órgãos jurisdicionais. Os Estados‑Membros limitaram os seus direitos soberanos nos domínios definidos pelos Tratados em benefício desta nova ordem jurídica dotada de instituições próprias e cujos sujeitos são não apenas os Estados‑Membros mas também os seus nacionais (v., neste sentido, Acórdãos de 5 de fevereiro de 1963, van Gend & Loos, 26/62, EU:C:1963:1, p. 23; de 15 de julho de 1964, Costa, 6/64, EU:C:1964:66, pp. 1158 e 1159; e de 21 de dezembro de 2021, Euro Box Promotion e o., C‑357/19, C‑379/19, C‑547/19, C‑811/19 e C‑840/19, EU:C:2021:1034, n.o 245).

48

Assim, no Acórdão de 15 de julho de 1964, Costa (6/64, EU:C:1964:66, pp. 1158 a 1160), o Tribunal de Justiça declarou que a criação pelo Tratado CEE de uma ordem jurídica própria, aceite pelos Estados‑Membros numa base de reciprocidade, tem como corolário a impossibilidade de estes fazerem prevalecer contra essa ordem jurídica uma medida unilateral posterior ou oporem ao direito emergente do Tratado CEE regras de direito nacional, sejam elas quais forem, sem que esse direito perca o seu caráter comunitário e sem pôr em causa a base jurídica da própria Comunidade. Além disso, o Tribunal de Justiça sublinhou que a força executiva do direito comunitário não pode variar de um Estado‑Membro para outro a favor das legislações internas posteriores, sem pôr em perigo a realização dos objetivos do Tratado CEE, nem provocar uma discriminação em razão da nacionalidade proibida por esse Tratado (Acórdão de 21 de dezembro de 2021, Euro Box Promotion e o., C‑357/19, C‑379/19, C‑547/19, C‑811/19 e C‑840/19, EU:C:2021:1034, n.o 246).

49

Estas características essenciais da ordem jurídica da União e a importância do respeito que lhe é devido foram, de resto, confirmadas pela ratificação, sem reservas, dos Tratados que alteram o Tratado CEE, nomeadamente do Tratado de Lisboa. Com efeito, ao adotar esse Tratado, a conferência dos representantes dos Governos dos Estados‑Membros recordou expressamente, na sua declaração n.o 17 relativa ao primado, anexada à ata final da conferência intergovernamental que adotou o Tratado de Lisboa (JO 2012, C 326, p. 346), que, «em conformidade com a jurisprudência constante do Tribunal de Justiça da União Europeia, os Tratados e o direito adotado pela União com base nos Tratados primam sobre o direito dos Estados‑Membros, nas condições estabelecidas pela referida jurisprudência» (v., neste sentido, Acórdão de 21 de dezembro de 2021, Euro Box Promotion e o., C‑357/19, C‑379/19, C‑547/19, C‑811/19 e C‑840/19, EU:C:2021:1034, n.o 248).

50

Após a entrada em vigor do Tratado de Lisboa, o Tribunal de Justiça confirmou reiteradamente a jurisprudência anterior relativa ao princípio do primado do direito da União, princípio que impõe que todas as instâncias dos Estados‑Membros confiram pleno efeito às diferentes normas da União, não podendo o direito dos Estados‑Membros afetar o efeito reconhecido a essas diferentes normas no território dos referidos Estados (Acórdão de 21 de dezembro de 2021, Euro Box Promotion e o., C‑357/19, C‑379/19, C‑547/19, C‑811/19 e C‑840/19, EU:C:2021:1034, n.o 250 e jurisprudência referida).

51

Resulta desta jurisprudência que, por força do princípio do primado do direito da União, o facto de um Estado‑Membro invocar disposições de direito nacional, ainda que de ordem constitucional, não pode afetar a unidade e a eficácia do direito da União. Com efeito, em conformidade com jurisprudência assente, os efeitos associados ao princípio do primado do direito da União impõem‑se a todos os órgãos de um Estado‑Membro, sem que, nomeadamente, as disposições internas, incluindo de ordem constitucional, o possam impedir (Acórdãos de 17 de dezembro de 1970, Internationale Handelsgesellschaft, 11/70, EU:C:1970:114, n.o 3, e de 21 de dezembro de 2021, Euro Box Promotion e o., C‑357/19, C‑379/19, C‑547/19, C‑811/19 e C‑840/19, EU:C:2021:1034, n.o 251).

52

Assim, dado que o Tribunal de Justiça tem competência exclusiva para fornecer a interpretação definitiva do direito da União (v., neste sentido, Acórdão de 2 de setembro de 2021, República da Moldávia, C‑741/19, EU:C:2021:655, n.o 45), cabe‑lhe, no exercício dessa competência, precisar o alcance do princípio do primado do direito da União à luz das disposições pertinentes desse direito, pelo que esse alcance não pode depender da interpretação de disposições do direito nacional, nem da interpretação de disposições do direito da União levada a cabo por um órgão jurisdicional nacional, que não corresponde à interpretação do Tribunal de Justiça (v., neste sentido, Acórdão de 21 de dezembro de 2021, Euro Box Promotion e o., C‑357/19, C‑379/19, C‑547/19, C‑811/19 e C‑840/19, EU:C:2021:1034, n.o 254).

53

A este respeito, importa nomeadamente lembrar que, por força do princípio do primado do direito da União, na impossibilidade de proceder a uma interpretação da regulamentação nacional conforme com as exigências do direito da União, o juiz nacional encarregado de aplicar as disposições do direito da União no âmbito da sua competência tem a obrigação de garantir o pleno efeito das mesmas, não aplicando, se necessário, por iniciativa própria, qualquer regulamentação ou prática nacional, ainda que posterior, contrária ao direito da União, sem que tenha de pedir ou aguardar pela sua eliminação prévia por via legislativa ou por qualquer outro procedimento constitucional (v., neste sentido, Acórdãos de 9 de março de 1978, Simmenthal, 106/77, EU:C:1978:49, n.o 24; de 24 de junho de 2019, Popławski, C‑573/17, EU:C:2019:530, n.os 61 e 62; e de 21 de dezembro de 2021, Euro Box Promotion e o., C‑357/19, C‑379/19, C‑547/19, C‑811/19 e C‑840/19, EU:C:2021:1034, n.o 252).

54

Como recordado no n.o 39 do presente acórdão, o respeito desta obrigação de aplicar integralmente qualquer disposição do direito da União de efeito direto deve ser considerado indispensável para garantir a plena aplicação do direito da União em todos os Estados‑Membros, conforme exigida pelo artigo 19.o, n.o 1, TUE.

55

O respeito da referida obrigação também é necessário para assegurar o respeito da igualdade dos Estados‑Membros perante os Tratados, a qual exclui a possibilidade de fazer prevalecer, contra a ordem jurídica da União, uma medida unilateral, seja ela qual for (v., neste sentido, Acórdão de 21 de dezembro de 2021, Euro Box Promotion e o., C‑357/19, C‑379/19, C‑547/19, C‑811/19 e C‑840/19, EU:C:2021:1034, n.o 249), e constitui uma expressão do princípio de cooperação leal enunciado no artigo 4.o, n.o 3, TUE, o qual impõe que não seja aplicada qualquer disposição eventualmente contrária da legislação nacional, quer a mesma seja anterior ou posterior à regra de direito da União de efeito direto (v., neste sentido, Acórdãos de 8 de setembro de 2010, Winner Wetten, C‑409/06, EU:C:2010:503, n.o 55, e de 21 de janeiro de 2021, Whiteland Import Export, C‑308/19, EU:C:2021:47, n.o 31).

56

No caso em apreço, o órgão jurisdicional de reenvio considera que, para se pronunciar sobre o processo principal, deve apreciar a compatibilidade da legislação nacional que instituiu a SIIJ com o artigo 19.o, n.o 1, segundo parágrafo, TUE, e com os objetivos de referência específicos em matéria de reforma do sistema judicial e de luta contra a corrupção enunciados no anexo da Decisão 2006/928.

57

Nestas condições, importa recordar, por um lado, que o Tribunal de Justiça já teve ocasião de declarar que essa legislação nacional está abrangida pelo âmbito de aplicação da Decisão 2006/928 e que deve, consequentemente, respeitar as exigências decorrentes do direito da União, em especial do artigo 2.o e do artigo 19.o, n.o 1, TUE (v., neste sentido, Acórdão de 18 de maio de 2021, Asociaţia Forumul Judecătorilor din România e o., C‑83/19, C‑127/19, C‑195/19, C‑291/19, C‑355/19 e C‑397/19, EU:C:2021:393, n.os 183 e 184).

58

Por outro lado, tanto o artigo 19.o, n.o 1, segundo parágrafo, TUE como os objetivos mencionados no n.o 56 do presente acórdão estão formulados em termos claros e precisos e não estão sujeitos a nenhuma condição, pelo que têm efeito direto (v., neste sentido, Acórdãos de 18 de maio de 2021, Asociaţia Forumul Judecătorilor din România e o., C‑83/19, C‑127/19, C‑195/19, C‑291/19, C‑355/19 e C‑397/19, EU:C:2021:393, n.os 249 e 250, e de 21 de dezembro de 2021, Euro Box Promotion e o., C‑357/19, C‑379/19, C‑547/19, C‑811/19 e C‑840/19, EU:C:2021:1034, n.o 253).

59

Daqui resulta que, não podendo proceder a uma interpretação conforme das disposições nacionais com a referida disposição ou com os referidos objetivos, os órgãos jurisdicionais comuns romenos devem afastar, por iniciativa própria, as disposições nacionais.

60

A este respeito, importa salientar que, em virtude do quadro jurídico nacional pertinente conforme descrito pelo órgão jurisdicional de reenvio, esses órgãos jurisdicionais comuns são, em princípio, competentes para apreciar a compatibilidade de disposições legislativas romenas com as normas de direito da União em causa, sem terem de submeter ao tribunal constitucional nacional um pedido para esse efeito.

61

No entanto, resulta da decisão de reenvio que os órgãos jurisdicionais comuns estão privados dessa competência quando o tribunal constitucional nacional tiver declarado que as disposições legislativas em causa são conformes com uma disposição constitucional nacional que prevê o primado do direito da União, uma vez que são obrigados a dar cumprimento à decisão do tribunal constitucional.

62

Neste contexto, importa recordar que o poder de, no próprio momento da aplicação do direito da União, fazer tudo o que for necessário para afastar uma regulamentação ou uma prática nacional que eventualmente constitua um obstáculo à plena eficácia das normas de efeito direto do direito da União faz parte integrante da função de juiz da União que incumbe ao juiz nacional, o qual está encarregado de aplicar tais normas no âmbito da sua competência, pelo que o exercício desse poder constitui uma garantia inerente à independência dos juízes decorrente do artigo 19.o, n.o 1, segundo parágrafo, TUE (v., neste sentido, Acórdão de 21 de dezembro de 2021, Euro Box Promotion e o., C‑357/19, C‑379/19, C‑547/19, C‑811/19 e C‑840/19, EU:C:2021:1034, n.o 257).

63

Assim, seria incompatível com as exigências inerentes à própria natureza do direito da União qualquer regulamentação ou prática nacional que tenha como efeito diminuir a eficácia daquele direito por recusar ao juiz competente para o aplicar o poder de, no momento desta aplicação, fazer tudo o que é necessário para afastar uma disposição ou uma prática nacional que possam impedir a plena eficácia das normas de efeito direto da União (v., neste sentido, Acórdãos de 9 de março de 1978, Simmenthal, 106/77, EU:C:1978:49, n.o 22, e de 21 de dezembro de 2021, Euro Box Promotion e o., C‑357/19, C‑379/19, C‑547/19, C‑811/19 e C‑840/19, EU:C:2021:1034, n.o 258). Seria esse o caso se, na hipótese de conflito entre uma disposição do direito da União e uma lei nacional, a solução desse conflito fosse reservada a uma autoridade diferente do juiz chamado a assegurar a aplicação do direito da União, investido de um poder de apreciação próprio (v., neste sentido, Acórdãos de 9 de março de 1978, Simmenthal, 106/77, EU:C:1978:49, n.o 23, e de 22 de junho de 2010, Melki e Abdeli, C‑188/10 e C‑189/10, EU:C:2010:363, n.o 44).

64

Além disso, importa recordar que, segundo jurisprudência constante, o mecanismo de reenvio prejudicial estabelecido pelo artigo 267.o TFUE visa assegurar que, em quaisquer circunstâncias, o direito da União tem o mesmo efeito em todos os Estados‑Membros e, assim, evitar divergências na interpretação desse direito, cuja aplicação incumbe aos órgãos jurisdicionais nacionais, sendo que o referido mecanismo se destina a garantir essa aplicação. Para este efeito, o referido artigo oferece ao juiz nacional um meio de eliminar as dificuldades que poderia suscitar a exigência de aplicação plena do direito da União no âmbito dos sistemas jurisdicionais dos Estados‑Membros. Assim, os órgãos jurisdicionais nacionais têm a faculdade muito ampla, ou mesmo a obrigação, de recorrer ao Tribunal de Justiça se considerarem que um processo neles pendente suscita questões relativas à interpretação ou apreciação da validade de disposições do direito da União sobre as quais têm de decidir [Acórdão de 16 de dezembro de 2021, AB e o. (Revogação de uma amnistia), C‑203/20, EU:C:2021:1016, n.o 49 e jurisprudência referida].

65

Por conseguinte, a eficácia da cooperação entre o Tribunal de Justiça e os órgãos jurisdicionais nacionais instituída pelo mecanismo de reenvio prejudicial e, portanto, do direito da União, ficaria comprometida se o resultado de uma exceção de inconstitucionalidade perante o tribunal constitucional de um Estado‑Membro pudesse ter como efeito dissuadir o juiz nacional, chamado a pronunciar‑se sobre um litígio regido pelo direito da União, de exercer a faculdade ou cumprir a obrigação, resultante do artigo 267.o TFUE, de submeter ao Tribunal de Justiça as questões sobre a interpretação ou a validade de atos desse direito, a fim de lhe permitir decidir se uma regra nacional é ou não compatível com ele [v., neste sentido, Acórdãos de 22 de junho de 2010, Melki e Abdeli, C‑188/10 e C‑189/10, EU:C:2010:363, n.o 45; de 5 de julho de 2016, Ognyanov, C‑614/14, EU:C:2016:514, n.o 25; e de 23 de novembro de 2021, IS (Ilegalidade do despacho de reenvio), C‑564/19, EU:C:2021:949, n.o 73].

66

Ora, na hipótese de o tribunal constitucional de um Estado‑Membro ter declarado que as disposições legislativas são conformes com uma disposição constitucional nacional que prevê o primado do direito da União, uma regra ou uma prática nacional como a descrita no n.o 61 do presente acórdão obsta à plena eficácia das normas de direito da União em causa, na medida em que impede o órgão jurisdicional comum chamado a assegurar a aplicação do direito da União de apreciar, ele próprio, a compatibilidade dessas disposições legislativas com esse direito.

67

A aplicação de tal regra ou de tal prática nacional prejudicaria igualmente a eficácia da cooperação entre o Tribunal de Justiça e os órgãos jurisdicionais nacionais instituída pelo mecanismo do reenvio prejudicial, dissuadindo o órgão jurisdicional comum chamado a decidir o litígio de submeter ao Tribunal de Justiça um pedido de decisão prejudicial, a fim de dar cumprimento às decisões do tribunal constitucional do Estado‑Membro em causa.

68

As constatações enunciadas nos números anteriores impõem‑se tanto mais numa situação como a referida pelo órgão jurisdicional de reenvio, em que um acórdão do tribunal constitucional do Estado‑Membro em causa recusa dar cumprimento a um acórdão proferido a título prejudicial pelo Tribunal de Justiça, baseando‑se, nomeadamente, na identidade constitucional deste Estado‑Membro e na consideração de que o Tribunal de Justiça excedeu a sua competência.

69

A este respeito, note‑se que o Tribunal de Justiça pode, nos termos do artigo 4.o, n.o 2, TUE, ser chamado a verificar se uma obrigação decorrente do direito da União infringe a identidade nacional de um Estado‑Membro (v., neste sentido, Acórdãos de 17 de julho de 2014, Torresi, C‑58/13 e C‑59/13, EU:C:2014:2088, n.o 58, e de 5 de junho de 2018, Coman e o., C‑673/16, EU:C:2018:385, n.o 46).

70

Em contrapartida, esta disposição não tem por objeto nem por efeito autorizar um tribunal constitucional de um Estado‑Membro, em violação das obrigações decorrentes, nomeadamente, do artigo 4.o, n.os 2 e 3, e do artigo 19.o, n.o 1, segundo parágrafo, TUE, às quais está sujeito, a afastar a aplicação de uma norma de direito da União com o fundamento de que essa norma viola a identidade nacional do Estado‑Membro em causa conforme definida pelo tribunal constitucional nacional.

71

Se o tribunal constitucional de um Estado‑Membro entende que uma disposição de direito derivado da União, como interpretada pelo Tribunal de Justiça, não cumpre a obrigação de respeitar a identidade nacional desse Estado‑Membro, este tribunal constitucional deve suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça um pedido de decisão prejudicial, em virtude do artigo 267.o TFUE, para que a validade desta disposição seja apreciada à luz do artigo 4.o, n.o 2, TUE, uma vez que o Tribunal de Justiça tem competência exclusiva para constatar a invalidade de um ato da União (v., neste sentido, Acórdãos de 22 de outubro de 1987, Foto‑Frost, 314/85, EU:C:1987:452, n.o 20, e de 3 de outubro de 2013, Inuit Tapiriit Kanatami e o./Parlamento e Conselho, C‑583/11 P, EU:C:2013:625, n.o 96).

72

Além disso, uma vez que, como foi recordado no n.o 52 do presente acórdão, o Tribunal de Justiça tem competência exclusiva para fornecer a interpretação definitiva do direito da União, o tribunal constitucional de um Estado‑Membro não pode, com base na sua própria interpretação de disposições do direito da União, incluindo do artigo 267.o TFUE, decidir validamente que o Tribunal de Justiça proferiu um acórdão que ultrapassa a sua esfera de competência e, por conseguinte, recusar dar cumprimento a um acórdão proferido a título prejudicial pelo Tribunal de Justiça.

73

A este respeito, cabe recordar que o processo de reenvio prejudicial previsto no artigo 267.o TFUE, que constitui a pedra angular do sistema jurisdicional instituído pelos Tratados, institui um diálogo de juiz a juiz entre o Tribunal de Justiça e os órgãos jurisdicionais dos Estados‑Membros, que tem por objetivo assegurar a unidade de interpretação do direito da União, permitindo assim assegurar a sua coerência, o seu efeito pleno e a sua autonomia, bem como, em última análise, o caráter particular do direito instituído pelos Tratados [v., neste sentido, Parecer 2/13 (Adesão da União à CEDH), de 18 de dezembro de 2014, EU:C:2014:2454, n.o 176, e Acórdão de 6 de outubro de 2021, Consorzio Italian Management e Catania Multiservizi, C‑561/19, EU:C:2021:799, n.o 27].

74

Um acórdão proferido no âmbito deste processo vincula o juiz nacional quanto à interpretação do direito da União para a solução do litígio que lhe foi submetido (v., neste sentido, Acórdãos de 3 de fevereiro de 1977, Benedetti, 52/76, EU:C:1977:16, n.o 26, e de 11 de dezembro de 2018, Weiss e o., C‑493/17, EU:C:2018:1000, n.o 19).

75

O juiz nacional que exerceu a faculdade que lhe confere o artigo 267.o, segundo parágrafo, TFUE deve, portanto, se for caso disso, afastar as apreciações de um órgão jurisdicional nacional superior se considerar, tendo em conta a interpretação dada pelo Tribunal de Justiça, que estas não são conformes com o direito da União, eventualmente deixando de aplicar a regra nacional que o obriga a dar cumprimento às decisões desse tribunal superior (v., neste sentido, Acórdão de 5 de outubro de 2010, Elchinov, C‑173/09, EU:C:2010:581, n.os 30 e 31).

76

Resulta da jurisprudência do Tribunal de Justiça que esta solução também se aplica quando um órgão jurisdicional comum está vinculado, por força de uma regra processual nacional, por uma decisão de um tribunal constitucional nacional que entende ser contrária ao direito da União (v., neste sentido, Acórdão de 15 de janeiro de 2013, Križan e o., C‑416/10, EU:C:2013:8, n.o 71).

77

Além disso, dado que a interpretação que o Tribunal de Justiça faz de uma regra do direito da União, no exercício da competência que lhe confere o artigo 267.o TFUE, esclarece e precisa o significado e o alcance dessa regra, como a mesma deve ou deveria ter sido entendida e aplicada desde a data da sua entrada em vigor [v., neste sentido, Acórdãos de 27 de março de 1980, Denkavit italiana, 61/79, EU:C:1980:100, n.o 16, e de 18 de novembro de 2021, Estado belga (Formação de pilotos), C‑413/20, EU:C:2021:938, n.o 53], há que considerar que um órgão jurisdicional comum, para assegurar a plena eficácia das regras de direito da União, deve afastar, num litígio que lhe foi submetido, as apreciações de um tribunal constitucional nacional que recusa dar cumprimento a um acórdão proferido a título prejudicial pelo Tribunal de Justiça, ainda que esse acórdão não proceda de um pedido de decisão prejudicial submetido no contexto desse litígio por esse órgão jurisdicional comum.

78

Tendo em conta o que precede, há que responder à primeira questão que o artigo 19.o, n.o 1, segundo parágrafo, TUE, lido em conjugação com o artigo 2.o, o artigo 4.o, n.os 2 e 3, TUE, com o artigo 267.o TFUE e com o princípio do primado do direito da União, deve ser interpretado no sentido de que se opõe a uma regulamentação ou a uma prática nacional que implica que os órgãos jurisdicionais comuns de um Estado‑Membro não estão habilitados a examinar a compatibilidade com o direito da União de uma legislação nacional que o tribunal constitucional desse Estado‑Membro declarou conforme com uma disposição constitucional nacional que impõe o respeito do princípio do primado do direito da União.

Quanto à segunda e terceira questões

79

Com a segunda e terceira questões, que devem ser analisadas em conjunto, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se o artigo 19.o, n.o 1, segundo parágrafo, TUE, lido em conjugação com o artigo 2.o TUE e com o artigo 47.o da Carta, deve ser interpretado no sentido de que se opõe a uma regulamentação ou a uma prática nacional que permite desencadear a responsabilidade disciplinar de um juiz nacional pelo facto de este ter aplicado o direito da União, conforme interpretado pelo Tribunal de Justiça, afastando‑se da jurisprudência do tribunal constitucional do Estado‑Membro em causa, que é incompatível com o primado do direito da União.

80

A título preliminar, recorde‑se que o artigo 47.o da Carta não é, enquanto tal, aplicável ao processo principal, como foi salientado no n.o 36 do presente acórdão.

81

Como foi recordado no n.o 41 do presente acórdão, o artigo 19.o, n.o 1, segundo parágrafo, TUE exige que sejam preservadas a independência e a imparcialidade das instâncias que podem ser chamadas a pronunciar‑se sobre questões ligadas à aplicação ou à interpretação do direito da União.

82

Estas garantias de independência e de imparcialidade exigidas pelo direito da União pressupõem a existência de regras que permitam afastar qualquer dúvida legítima, no espírito dos litigantes, quanto à impermeabilidade da referida instância em relação a elementos externos e à sua neutralidade relativamente aos interesses em confronto (Acórdão de 21 de dezembro de 2021, Euro Box Promotion e o., C‑357/19, C‑379/19, C‑547/19, C‑811/19 e C‑840/19, EU:C:2021:1034, n.o 225 e jurisprudência referida).

83

No que respeita, mais precisamente, à responsabilidade disciplinar em que os juízes de direito comum podem incorrer, ao abrigo da regulamentação nacional em causa, em caso de incumprimento das decisões do tribunal constitucional nacional, é verdade que a salvaguarda da independência dos órgãos jurisdicionais não pode nomeadamente ter como consequência excluir inteiramente que, em certos casos absolutamente excecionais, a responsabilidade disciplinar de um juiz possa ser acionada devido a decisões judiciais por si proferidas. Com efeito, a referida exigência de independência não se destina, evidentemente, a justificar eventuais condutas graves e totalmente indesculpáveis de juízes, como, por exemplo, a violação deliberada e de má‑fé, ou com negligência especialmente grave e grosseira, das regras de direito nacional e da União cujo respeito devem assegurar, ou a adoção de uma conduta arbitrária ou de denegação de justiça, quando, enquanto depositários da função de julgar, os juízes são chamados a dirimir litígios que lhes são submetidos pelos particulares [Acórdãos de 15 de julho de 2021, Comissão/Polónia (Regime disciplinar aplicável aos juízes), C‑791/19, EU:C:2021:596, n.o 137, e de 21 de dezembro de 2021, Euro Box Promotion e o., C‑357/19, C‑379/19, C‑547/19, C‑811/19 e C‑840/19, EU:C:2021:1034, n.o 238].

84

Todavia, para preservar a independência dos órgãos jurisdicionais e assim evitar que o regime disciplinar possa ser desviado das suas finalidades legítimas e utilizado para fins de controlo político das decisões judiciais ou de pressão sobre os juízes, afigura‑se essencial que o facto de uma decisão judicial comportar um eventual erro na interpretação e aplicação das regras de direito nacional e da União, ou na apreciação dos factos e das provas, não possa, por si só, implicar a responsabilidade disciplinar do juiz em causa [Acórdãos de 15 de julho de 2021,Comissão/Polónia (Regime disciplinar aplicável aos juízes), C‑791/19, EU:C:2021:596, n.o 138, e de 21 de dezembro de 2021, Euro Box Promotion e o., C‑357/19, C‑379/19, C‑547/19, C‑811/19 e C‑840/19, EU:C:2021:1034, n.o 239].

85

Constitui, além disso, uma garantia inerente à independência dos juízes nacionais o facto de estes não estarem expostos a processos ou a sanções disciplinares por terem exercido a faculdade de recorrer ao Tribunal de Justiça ao abrigo do artigo 267.o TFUE, que é da sua competência exclusiva (Acórdão de 21 de dezembro de 2021, Euro Box Promotion e o., C‑357/19, C‑379/19, C‑547/19, C‑811/19 e C‑840/19, EU:C:2021:1034, n.o 227 e jurisprudência referida).

86

Por conseguinte, é necessário que a responsabilidade disciplinar de um juiz com fundamento numa decisão judicial seja limitada a casos absolutamente excecionais, como os referidos no n.o 83 do presente acórdão, e enquadrada, a este respeito, por critérios objetivos e verificáveis, baseados em imperativos resultantes da boa administração da justiça, bem como por garantias destinadas a evitar qualquer risco de pressões externas sobre o conteúdo das decisões judiciais e a afastar, assim, no espírito dos litigantes, qualquer dúvida legítima quanto à impermeabilidade dos juízes em causa e à sua neutralidade relativamente aos interesses em confronto [Acórdãos de 15 de julho de 2021, Comissão/Polónia (Regime disciplinar aplicável aos juízes), C‑791/19, EU:C:2021:596, n.o 139, e de 21 de dezembro de 2021, Euro Box Promotion e o., C‑357/19, C‑379/19, C‑547/19, C‑811/19 e C‑840/19, EU:C:2021:1034, n.o 240].

87

Daqui resulta que o artigo 2.o e o artigo 19.o, n.o 1, segundo parágrafo, TUE devem ser interpretados no sentido de que se opõem a uma regulamentação ou a uma prática nacional que permite desencadear a responsabilidade disciplinar de um juiz nacional por qualquer incumprimento das decisões do tribunal constitucional nacional (v., neste sentido, Acórdão de 21 de dezembro de 2021, Euro Box Promotion e o., C‑357/19, C‑379/19, C‑547/19, C‑811/19 e C‑840/19, EU:C:2021:1034, n.o 242).

88

À luz da resposta dada à primeira questão, a violação da independência dos juízes nacionais que essa regulamentação ou prática nacional implica também é incompatível com os princípios da igualdade entre os Estados‑Membros e da cooperação leal entre a União e os Estados‑Membros, reconhecidos pelo artigo 4.o, n.os 2 e 3, TUE, com o artigo 267.o TFUE e com o princípio do primado do direito da União quando a responsabilidade disciplinar de um juiz nacional assentar na circunstância de este ter afastado a aplicação de uma decisão do tribunal constitucional do Estado‑Membro em causa através qual este último se recusou a dar cumprimento a um acórdão proferido a título prejudicial pelo Tribunal de Justiça.

89

Esta interpretação impõe‑se tanto mais quanto tal responsabilidade disciplinar de um juiz nacional é suscetível de reforçar o caráter atentatório das exigências do direito da União de uma regulamentação nacional que implica que os órgãos jurisdicionais comuns de um Estado‑Membro não podem examinar a compatibilidade com o direito da União de uma legislação nacional que o tribunal constitucional desse Estado‑Membro, ao recusar dar cumprimento a um acórdão proferido a título prejudicial pelo Tribunal de Justiça, julgou conforme com uma disposição constitucional nacional que prevê o primado do direito da União (v., por analogia, Acórdão de 21 de dezembro de 2021, Euro Box Promotion e o., C‑357/19, C‑379/19, C‑547/19, C‑811/19 e C‑840/19, EU:C:2021:1034, n.o 259).

90

Além disso, embora o Governo romeno tenha declarado na audiência que não tinha sido imposta qualquer sanção nos termos da disposição legislativa nacional a que se referem a segunda e terceira questões, deve ter‑se em conta que a mera perspetiva da abertura de uma investigação disciplinar é, enquanto tal, suscetível de exercer pressão sobre aqueles a quem compete julgar (v., neste sentido, Acórdão de 18 de maio de 2021, Asociaţia Forumul Judecătorilor din România e o., C‑83/19, C‑127/19, C‑195/19, C‑291/19, C‑355/19 e C‑397/19, EU:C:2021:393, n.o 199).

91

Ora, as indicações que figuram na decisão de reenvio não revelam que a responsabilidade dos juízes nacionais de direito comum pela inobservância das decisões da Curtea Constituțională (Tribunal Constitucional), prevista no artigo 99.o, alínea ș), da Lei n.o 303/2004, esteja subordinada a condições que permitam garantir que tal responsabilidade se limita aos casos absolutamente excecionais mencionados no n.o 83 do presente acórdão, nos termos exigidos, como foi recordado nos n.os 84 e 86 do presente acórdão, pelo artigo 19.o, n.o 1, segundo parágrafo, TUE.

92

Importa ainda salientar que, no n.o 241 do Acórdão de 21 de dezembro de 2021, Euro Box Promotion e o. (C‑357/19, C‑379/19, C‑547/19, C‑811/19 e C‑840/19, EU:C:2021:1034), o Tribunal de Justiça já tinha constatado que, dos pedidos de decisão prejudicial nos processos que deram lugar a esse acórdão, não resultava que tal responsabilidade estivesse limitada a tais casos.

93

Tendo em conta todas as considerações precedentes, há que responder à segunda e terceira questões que o artigo 19.o, n.o 1, segundo parágrafo, TUE, lido em conjugação com o artigo 2.o e o artigo 4.o, n.os 2 e 3, TUE, com o artigo 267.o TFUE e com o princípio do primado do direito da União, deve ser interpretado no sentido de que se opõe a uma regulamentação ou a uma prática nacional que permite desencadear a responsabilidade disciplinar de um juiz nacional por este ter aplicado o direito da União, conforme interpretado pelo Tribunal de Justiça, afastando‑se da jurisprudência do tribunal constitucional do Estado‑Membro em causa, incompatível com o princípio do primado do direito da União.

Quanto às despesas

94

Revestindo o processo, quanto às partes na causa principal, a natureza de incidente suscitado perante o órgão jurisdicional de reenvio, compete a este decidir quanto às despesas. As despesas efetuadas pelas outras partes para a apresentação de observações ao Tribunal de Justiça não são reembolsáveis.

 

Pelos fundamentos expostos, o Tribunal de Justiça (Grande Secção) declara:

 

1)

O artigo 19.o, n.o 1, segundo parágrafo, TUE, lido em conjugação com o artigo 2.o, o artigo 4.o, n.os 2 e 3, TUE, com o artigo 267.o TFUE e com o princípio do primado do direito da União, deve ser interpretado no sentido de que se opõe a uma regulamentação ou a uma prática nacional que implica que os órgãos jurisdicionais comuns de um Estado‑Membro não estão habilitados a examinar a compatibilidade com o direito da União de uma legislação nacional que o tribunal constitucional desse Estado‑Membro declarou conforme com uma disposição constitucional nacional que impõe o respeito do princípio do primado do direito da União.

 

2)

O artigo 19.o, n.o 1, segundo parágrafo, TUE, lido em conjugação com o artigo 2.o e o artigo 4.o, n.os 2 e 3, TUE, com o artigo 267.o TFUE e com o princípio do primado do direito da União, deve ser interpretado no sentido de que se opõe a uma regulamentação ou a uma prática nacional que permite desencadear a responsabilidade disciplinar de um juiz nacional por este ter aplicado o direito da União, conforme interpretado pelo Tribunal de Justiça, afastando‑se da jurisprudência do tribunal constitucional do Estado‑Membro em causa, incompatível com o princípio do primado do direito da União.

 

Assinaturas


( *1 ) Língua do processo: romeno.

Início