ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Quarta Secção)

13 de julho de 2023 ( *1 )

«Reenvio prejudicial — Competência em matéria de responsabilidade parental — Regulamento (CE) n.o 2201/2003 — Artigos 10.o e 15.o — Transferência para um tribunal mais bem colocado para apreciar a ação — Requisitos — Tribunal do Estado‑Membro para o qual a criança foi deslocada ilicitamente — Convenção da Haia de 1980 — Superior interesse da criança»

No processo C‑87/22,

que tem por objeto um pedido de decisão prejudicial apresentado, nos termos do artigo 267.o TFUE, pelo Landesgericht Korneuburg (Tribunal Regional de Korneuburg, Áustria), por Decisão de 4 de janeiro de 2022, que deu entrada no Tribunal de Justiça em 9 de fevereiro de 2022, no processo

TT

contra

AK,

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Quarta Secção),

composto por: C. Lycourgos, presidente de secção, K. Lenaerts, presidente do Tribunal de Justiça, exercendo funções de juiz da Quarta Secção, L. S. Rossi (relatora), J.‑C. Bonichot e O. Spineanu‑Matei, juízes,

advogado‑geral: P. Pikamäe,

secretário: D. Dittert, chefe de unidade,

vistos os autos e após a audiência de 12 de janeiro de 2023,

vistas as observações apresentadas:

em representação de TT, por Z. Gáliková, M. Hrabovská, advokátky, P. Hajek e P. Rosenich, Rechtsanwälte,

em representação de AK, por S. Lenzhofer e L. Stelzer Páleníková, Rechtsanwälte,

em representação do Governo eslovaco, por S. Ondrášiková e B. Ricziová, na qualidade de agentes,

em representação da Comissão Europeia, por H. Leupold e W. Wils, na qualidade de agentes,

ouvidas as conclusões do advogado‑geral na audiência de 23 de março de 2023,

profere o presente

Acórdão

1

O pedido de decisão prejudicial tem por objeto a interpretação do artigo 15.o do Regulamento (CE) n.o 2201/2003 do Conselho, de 27 de novembro de 2003, relativo à competência, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria matrimonial e em matéria de responsabilidade parental e que revoga o Regulamento (CE) n.o 1347/2000 (JO 2003, L 338, p. 1).

2

Este pedido foi apresentado no âmbito de um litígio que opõe TT, nacional eslovaco que reside na Áustria, a AK, nacional eslovaca, a respeito da guarda dos dois filhos comuns que residem na Eslováquia com esta última.

Quadro jurídico

Convenção da Haia de 1980

3

O artigo 6.o da Convenção sobre os Aspetos Civis do Rapto Internacional de Crianças, celebrada na Haia, em 25 de outubro de 1980 (a seguir «Convenção da Haia de 1980»), estipula:

«Cada Estado Contratante designará uma autoridade central encarregada de dar cumprimento às obrigações que lhe são impostas pela presente Convenção.»

4

O artigo 8.o, primeiro e terceiro parágrafos, alínea f), desta Convenção estabelece:

«Qualquer pessoa, instituição ou organismo que julgue que uma criança tenha sido deslocada ou retirada em violação de um direito de custódia pode participar o facto à autoridade central da residência habitual da criança ou à autoridade central de qualquer outro Estado Contratante, para que lhe seja prestada assistência por forma a assegurar o regresso da criança.

[…]

O pedido deve conter:


[…]

f)

Um atestado ou uma declaração sob juramento, emitidos pela autoridade central, ou por qualquer outra entidade competente do Estado da residência habitual, ou por uma pessoa qualificada, relativa ao direito desse Estado na matéria».

5

O artigo 16.o da referida Convenção prevê:

«Depois de terem sido informadas da transferência ilícita ou da retenção de uma criança no contexto do Artigo 3.o, as autoridades judiciais ou administrativas do Estado Contratante para onde a criança tenha sido levada ou onde esteja retida não poderão tomar decisões sobre o fundo do direito de custódia sem que seja provado não estarem reunidas as condições previstas na presente Convenção para regresso da criança, ou sem que tiver decorrido um período razoável de tempo sem que haja sido apresentado qualquer requerimento em aplicação do prescrito pela presente Convenção.»

Regulamento n.o 2201/2003

6

Os considerandos 12, 13, 17 e 33 do Regulamento n.o 2201/2003 têm a seguinte redação:

«(12)

As regras de competência em matéria de responsabilidade parental do presente regulamento são definidas em função do superior interesse da criança e, em particular, do critério da proximidade. Por conseguinte, a competência deverá ser, em primeiro lugar, atribuída aos tribunais do Estado‑Membro de residência habitual da criança, exceto em determinados casos de mudança da sua residência habitual ou na sequência de um acordo entre os titulares da responsabilidade parental.

(13)

No interesse da criança, o presente regulamento permite que o tribunal competente possa, a título excecional e em certas condições, remeter o processo a um tribunal de outro Estado‑Membro se este estiver em melhores condições para dele conhecer. Todavia, nesse caso, o segundo tribunal não deverá ser autorizado a remeter o processo a um terceiro tribunal.

[…]

(17)

Em caso de deslocação ou de retenção ilícitas de uma criança, deve ser obtido sem demora o seu regresso; para o efeito, deverá continuar a aplicar‑se a Convenção de Haia [de] 1980, completada pelas disposições do presente regulamento, nomeadamente o artigo 11.o Os tribunais do Estado‑Membro para o qual a criança tenha sido deslocada ou no qual tenha sido retida ilicitamente devem poder opor‑se ao seu regresso em casos específicos devidamente justificados. Todavia, tal decisão deve poder ser substituída por uma decisão posterior do tribunal do Estado‑Membro da residência habitual da criança antes da deslocação ou da retenção ilícitas. Se esta última decisão implicar o regresso da criança, este deverá ser efetuado sem necessidade de qualquer procedimento específico para o reconhecimento e a execução da referida decisão no Estado‑Membro onde se encontra a criança raptada.

[…]

(33)

O presente regulamento reconhece os direitos fundamentais e os princípios consagrados na Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia; pretende, designadamente, garantir o pleno respeito dos direitos fundamentais da criança enunciados no artigo 24.o da Carta dos Direitos Fundamentais […]»

7

O artigo 2.o deste regulamento, intitulado «Definições», enuncia:

«Para efeitos do presente regulamento, entende‑se por:

[…]

7.

“Responsabilidade parental”, o conjunto dos direitos e obrigações conferidos a uma pessoa singular ou coletiva por decisão judicial, por atribuição de pleno direito ou por acordo em vigor relativo à pessoa ou aos bens de uma criança. O termo compreende, nomeadamente, o direito de guarda e o direito de visita.

[…]

9.

“Direito de guarda”, os direitos e obrigações relativos aos cuidados devidos à criança e, em particular, o direito de decidir sobre o seu lugar de residência.

[…]

11.

“Deslocação ou retenção ilícitas de uma criança”, a deslocação ou a retenção de uma criança, quando:

a)

Viole o direito de guarda conferido por decisão judicial, por atribuição de pleno direito ou por acordo em vigor por força da legislação do Estado‑Membro onde a criança tinha a sua residência habitual imediatamente antes da deslocação ou retenção;

e

b)

No momento da deslocação ou retenção, o direito de guarda estivesse a ser efetivamente exercido, quer conjunta, quer separadamente, ou devesse estar a sê‑lo, caso não tivesse ocorrido a deslocação ou retenção. Considera‑se que a guarda é exercida conjuntamente quando um dos titulares da responsabilidade parental não pode, por força de uma decisão ou por atribuição de pleno direito, decidir sobre [o] local de residência da criança sem o consentimento do outro titular da responsabilidade parental.»

8

O Regulamento n.o 2201/2003 inclui um capítulo II, sob a epígrafe «Competência», que contém, na sua secção 2, ela própria intitulada «Responsabilidade parental», os artigos 8.o a 15.o desse regulamento.

9

O artigo 8.o do referido regulamento, sob a epígrafe «Competência geral», prevê:

«1.   Os tribunais de um Estado‑Membro são competentes em matéria de responsabilidade parental relativa a uma criança que resida habitualmente nesse Estado‑Membro à data em que o processo seja instaurado no tribunal.

2.   O n.o 1 é aplicável sob reserva do disposto nos artigos 9.o, 10.o e 12.o»

10

O artigo 10.o do mesmo regulamento, intitulado «Competência em caso de rapto da criança», dispõe:

«Em caso de deslocação ou retenção ilícitas de uma criança, os tribunais do Estado‑Membro onde a criança residia habitualmente imediatamente antes da deslocação ou retenção ilícitas, continuam a ser competentes até a criança passar a ter a sua residência habitual noutro Estado‑Membro e:

a)

Cada pessoa, instituição ou outro organismo titular do direito de guarda dar o seu consentimento à deslocação ou à retenção;

ou

b)

A criança ter estado a residir nesse outro Estado‑Membro durante, pelo menos, um ano após a data em que a pessoa, instituição ou outro organismo, titular do direito de guarda tenha tomado ou devesse ter tomado conhecimento do paradeiro da criança, se esta se encontrar integrada no seu novo ambiente e se estiver preenchida pelo menos uma das seguintes condições:

i)

não ter sido apresentado, no prazo de um ano após a data em que o titular do direito de guarda tenha tomado ou devesse ter tomado conhecimento do paradeiro da criança, qualquer pedido de regresso desta às autoridades competentes do Estado‑Membro para onde a criança foi deslocada ou se encontra retida,

ii)

o titular do direito de guarda ter desistido do pedido de regresso e não ter sido apresentado nenhum novo pedido dentro do prazo previsto na subalínea i),

iii)

o processo instaurado num tribunal do Estado‑Membro da residência habitual da criança imediatamente antes da deslocação ou retenção ilícitas ter sido arquivado nos termos do n.o 7 do artigo 11.o,

iv)

os tribunais do Estado‑Membro da residência habitual da criança imediatamente antes da deslocação ou retenção ilícitas terem proferido uma decisão sobre a guarda que não determine o regresso da criança.»

11

O artigo 11.o do Regulamento n.o 2201/2003, sob a epígrafe «Regresso da criança», enuncia, nos seus n.os 1 a 3:

«1.   Os n.os 2 a 8 são aplicáveis quando uma pessoa, instituição ou outro organismo titular do direito de guarda pedir às autoridades competentes de um Estado‑Membro uma decisão, baseada na Convenção da Haia [de 1980], a fim de obter o regresso de uma criança que tenha sido ilicitamente deslocada ou retida num Estado‑Membro que não o da sua residência habitual imediatamente antes da deslocação ou retenção ilícitas.

2.   Ao aplicar os artigos 12.o e 13.o da Convenção da Haia de 1980, deve‑se providenciar no sentido de que a criança tenha a oportunidade de ser ouvida durante o processo, exceto se tal for considerado inadequado em função da sua idade ou grau de maturidade.

3.   O tribunal ao qual seja apresentado um pedido de regresso de uma criança, nos termos do disposto no n.o 1, deve acelerar a tramitação do pedido, utilizando o procedimento mais expedito previsto na legislação nacional.

Sem prejuízo do disposto no primeiro parágrafo, o tribunal deve pronunciar‑se o mais tardar no prazo de seis semanas a contar da apresentação do pedido, exceto em caso de circunstâncias excecionais que o impossibilitem.»

12

O artigo 12.o deste regulamento, intitulado «Extensão da competência», concede, sob certas condições, competência para decidir de qualquer questão relativa à responsabilidade parental aos tribunais do Estado‑Membro que são competentes para decidir de um pedido de divórcio, de separação ou de anulação do casamento.

13

O artigo 15.o do referido regulamento, sob a epígrafe «Transferência para um tribunal mais bem colocado para apreciar a ação», dispõe:

«1.   Excecionalmente, os tribunais de um Estado‑Membro competentes para conhecer do mérito podem, se considerarem que um tribunal de outro Estado‑Membro, com o qual a criança tenha uma ligação particular, se encontra mais bem colocado para conhecer do processo ou de alguns dos seus aspetos específicos, e se tal servir o superior interesse da criança:

a)

Suspender a instância em relação à totalidade ou a parte do processo em questão e convidar as partes a apresentarem um pedido ao tribunal desse outro Estado‑Membro, nos termos do n.o 4; ou

b)

Pedir ao tribunal de outro Estado‑Membro que se declare competente nos termos do n.o 5.

2.   O n.o 1 é aplicável:

a)

A pedido de uma das partes; ou

b)

Por iniciativa do tribunal; ou

c)

A pedido do tribunal de outro Estado‑Membro com o qual a criança tenha uma ligação particular, nos termos do n.o 3.

Todavia, a transferência só pode ser efetuada por iniciativa do tribunal ou a pedido do tribunal de outro Estado‑Membro, se for aceite pelo menos por uma das partes.

3.   Considera‑se que a criança tem uma ligação particular com um Estado‑Membro, na aceção do n.o 2, se:

a)

Depois de instaurado o processo no tribunal referido no n.o 1, a criança tiver adquirido a sua residência habitual nesse Estado‑Membro; ou

b)

A criança tiver tido a sua residência habitual nesse Estado‑Membro; ou

c)

A criança for nacional desse Estado‑Membro; ou

d)

Um dos titulares da responsabilidade parental tiver a sua residência habitual nesse Estado‑Membro; ou

e)

O litígio se referir às medidas de proteção da criança relacionadas com a administração, a conservação ou a disposição dos bens na posse da criança, que se encontram no território desse Estado‑Membro.

4.   O tribunal do Estado‑Membro competente para conhecer do mérito deve fixar um prazo para instaurar um processo nos tribunais do outro Estado‑Membro, nos termos do n.o 1.

Se não tiver sido instaurado um processo dentro desse prazo, continua a ser competente o tribunal em que o processo tenha sido instaurado nos termos dos artigos 8.o a 14.o

5.   O tribunal desse outro Estado‑Membro pode, se tal servir o superior interesse da criança, em virtude das circunstâncias específicas do caso, declarar‑se competente no prazo de seis semanas a contar da data em que tiver sido instaurado o processo com base nas alíneas a) ou b) do n.o 1. Nesse caso, o tribunal em que o processo tenha sido instaurado em primeiro lugar renuncia à sua competência. No caso contrário, o tribunal em que o processo tenha sido instaurado em primeiro lugar continua a ser competente, nos termos dos artigos 8.o a 14.o

6.   Os tribunais devem cooperar para efeitos do presente artigo, quer diretamente, quer através das autoridades centrais designadas nos termos do artigo 53.o»

14

O artigo 20.o do referido regulamento, intitulado «Medidas provisórias e cautelares», dispõe:

«1.   Em caso de urgência, o disposto no presente regulamento não impede que os tribunais de um Estado‑Membro tomem as medidas provisórias ou cautelares relativas às pessoas ou bens presentes nesse Estado‑Membro, e previstas na sua legislação, mesmo que, por força do presente regulamento, um tribunal de outro Estado‑Membro seja competente para conhecer do mérito.

2.   As medidas tomadas por força do n.o 1 deixam de ter efeito quando o tribunal do Estado‑Membro competente quanto ao mérito ao abrigo do presente regulamento tiver tomado as medidas que considerar adequadas.»

15

O artigo 60.o deste mesmo regulamento enuncia:

«Nas relações entre os Estados‑Membros, o presente regulamento prevalece sobre as seguintes convenções, na medida em que estas se refiram a matérias por ele reguladas:

[…]

e) Convenção de Haia [de 1980].»

Litígio no processo principal e questões prejudiciais

16

TT, recorrente no processo principal, e AK, recorrida no processo principal, ambos nacionais eslovacos, são os pais de V e M, nascidos fora do casamento na Eslováquia em 2012. Segundo a lei eslovaca, a guarda dos filhos é partilhada.

17

Em 2014 a família instalou‑se na Áustria onde as crianças frequentaram uma creche e depois um estabelecimento escolar. Em 2017, ainda que continuando a residir na Áustria, as crianças foram escolarizadas na Eslováquia, realizando diariamente o trajeto entre o seu domicílio na Áustria e a sua nova escola. As crianças comunicam com os seus pais e avós em eslovaco e sabem apenas algumas palavras em língua alemã.

18

TT e AK separaram‑se no início de 2020. Em julho de 2020, AK levou as crianças para viverem consigo na Eslováquia, sem o consentimento de TT.

19

Ao abrigo da Convenção da Haia de 1980, TT apresentou, em aplicação do artigo 8.o, primeiro e terceiro parágrafos, alínea f), dessa convenção, um pedido de regresso das crianças, no Okresný súd Bratislava I (Tribunal de Primeira Instância de Bratislava I, Eslováquia).

20

Paralelamente, TT apresentou um pedido no Bezirksgericht Bruck an der Leitha (Tribunal de Primeira Instância de Bruck an der Leitha, Áustria) para que lhe fosse atribuída, a título principal, a guarda exclusiva das duas crianças. Alega em substância que, ao tê‑las deslocado ilicitamente da Áustria para a Eslováquia, AK tinha violado o interesse superior das crianças, e impedia‑as de se relacionarem com o pai.

21

AK opôs‑se a este último pedido, alegando a incompetência internacional do órgão jurisdicional onde foi apresentado, com o fundamento de que a residência habitual das crianças tinha sido sempre na Eslováquia, e que as mesmas não estavam socialmente integradas no local onde se situava a habitação familiar na Áustria.

22

Por Decisão de 4 de janeiro de 2021, o referido órgão jurisdicional julgou improcedente o pedido de TT, acolhendo a exceção de incompetência internacional suscitada por AK.

23

TT interpôs recurso para o Landesgericht Korneuburg (Tribunal Regional de Korneuburg, Áustria) que, por Decisão de 23 de fevereiro de 2021, alterou a decisão da primeira instância e negou provimento à exceção de incompetência internacional suscitada pela mãe. Na sequência de recurso extraordinário «Revision», esta decisão foi confirmada por Despacho do Oberster Gerichtshof (Supremo Tribunal de Justiça, Áustria) de 23 de junho de 2021.

24

Em 23 de setembro de 2021, AK apresentou ao Bezirksgericht Bruck an der Leitha (Tribunal de Primeira Instância de Bruck an der Leitha) um pedido para que este pedisse a um tribunal da República da Eslováquia que se declarasse competente em matéria de direito de guarda dos filhos, em conformidade com o disposto no artigo 15.o, n.os 1, alínea b), 2, alínea a), e 5 do Regulamento (CE) n.o 2201/2003. A este propósito, AK alegou que, por um lado, além do procedimento de regresso instaurado por TT ao abrigo da Convenção da Haia de 1980 perante o Okresný súd Bratislava I (Tribunal de Primeira Instância de Bratislava I), estavam nele pendentes vários processos intentados por cada um dos pais e, por outro, tendo em conta múltiplos elementos de prova assim recolhidos, os tribunais eslovacos estavam mais bem colocados para decidir sobre a questão da responsabilidade parental relativa às duas crianças.

25

TT opôs‑se a este pedido alegando, no essencial, que a competência prevista no artigo 15.o do Regulamento n.o 2201/2003 não pode ser transferida quando é apresentado nos tribunais do outro Estado‑Membro, chamados a exercer a sua competência, um pedido de regresso ao abrigo da Convenção da Haia de 1980, a que se refere o artigo 11.o desse regulamento.

26

O Bezirksgericht Bruck an der Leitha (Tribunal de Primeira Instância de Bruck an der Leitha) julgou procedente o pedido de AK. Este órgão jurisdicional considerou que o Okresný súd Bratislava V (Tribunal de Primeira Instância de Bratislava V), que já tinha proferido várias decisões relativas ao direito de visita de TT às crianças, estava mais bem colocado para conhecer da responsabilidade parental e do direito de visita relativos às duas crianças, que residiam com a mãe na Eslováquia desde julho de 2020 e não estavam socialmente integradas na Áustria. Além disso, o desenrolar da tramitação num órgão jurisdicional austríaco seria dificultado devido à necessidade de um intérprete ajuramentado para todas as entrevistas e fiscalizações nos inquéritos dos organismos austríacos de proteção da infância e da juventude e para os peritos em psicologia infantil designados.

27

TT interpôs recurso desta decisão para o Landesgericht Korneuburg (Tribunal Regional de Korneuburg).

28

O órgão jurisdicional de reenvio salienta, em primeiro lugar, que a questão relativa à articulação entre o artigo 15.o, n.o 1, e o artigo 10.o do Regulamento n.o 2201/2003, ainda não foi resolvida pelo Tribunal de Justiça. A este respeito, interroga‑se sobre se o órgão jurisdicional de um Estado‑Membro, competente para decidir quanto ao mérito do direito de guarda de uma criança, está autorizado a transferir essa competência, ao abrigo do artigo 15.o, n.o 1, alínea b), desse regulamento, para um órgão jurisdicional do Estado‑Membro em que essa criança estabeleceu, entretanto, a sua residência habitual na sequência de uma deslocação ilícita. Em segundo lugar, em caso de resposta afirmativa do Tribunal de Justiça a esta questão, o órgão jurisdicional de reenvio interroga‑se sobre se as condições enumeradas no artigo 15.o, n.o 1, do Regulamento n.o 2201/2003 têm caráter exaustivo ou se, tendo em conta a especificidade da deslocação ilícita, outras circunstâncias podem ser tomadas em consideração.

29

Nestas condições, o Landesgericht Korneuburg (Tribunal Regional de Korneuburg) decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça as seguintes questões prejudiciais:

«1)

Deve o artigo 15.o do Regulamento [n.o 2201/2003] ser interpretado no sentido de que, quando um [tribunal de um] Estado‑Membro competente para conhecer do mérito considerar que um tribunal de outro Estado‑Membro, com o qual a criança tem uma ligação particular, está em melhores condições para conhecer do processo ou de alguns dos seus aspetos específicos, pede ao tribunal de outro Estado‑Membro que se declare competente, este pedido é lícito mesmo que este segundo Estado‑Membro seja o Estado‑Membro onde a criança tem residência habitual após uma deslocação ilícita?

2)

Deve o artigo 15.o do Regulamento [n.o 2201/2003] ser interpretado no sentido de que os critérios nele previstos para a transferência da competência são exaustivos, sem que sejam necessários outros critérios que tenham em conta um procedimento iniciado ao abrigo do artigo 8.o, [primeiro e terceiro parágrafos,] alínea f), da Convenção de Haia [de 1980]?»

Quanto às questões prejudiciais

Quanto à primeira questão

30

Com a sua primeira questão, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se o artigo 15.o do Regulamento n.o 2201/2003 deve ser interpretado no sentido de que o tribunal de um Estado‑Membro, competente para decidir quanto ao mérito de um processo em matéria de responsabilidade parental nos termos do artigo 10.o desse regulamento, pode pedir a remessa desse processo, prevista no artigo 15.o, n.o 1, alínea b), do referido regulamento, a um tribunal do Estado‑Membro para o qual essa criança foi deslocada ilicitamente por um dos pais.

31

A título liminar, há que salientar que esta questão assenta na dupla premissa de que, por um lado, a deslocação das crianças por AK da Áustria para a Eslováquia, na medida em que teve lugar sem o consentimento de TT, constitui uma «deslocação ilícita», na aceção do artigo 2.o, ponto 11, alínea a), do Regulamento n.o 2201/2003 e, por outro, o órgão jurisdicional de reenvio, enquanto tribunal do Estado‑Membro em cujo território as crianças tinham a sua residência habitual imediatamente antes da sua deslocação ilícita, é competente para decidir quanto ao mérito em matéria de responsabilidade parental em relação a estas crianças, nos termos do artigo 10.o desse regulamento.

32

Feita esta precisão, há que recordar que o Regulamento n.o 2201/2003 estabelece, na secção 2 do seu capítulo II, regras de competência em matéria de responsabilidade parental, em particular relativas ao direito de guarda.

33

Como resulta do considerando 12 do referido regulamento, estas regras de competência foram definidas com o objetivo de responder ao superior interesse da criança e, para esse efeito, privilegiam o critério da proximidade. O artigo 8.o, n.o 1, do mesmo regulamento traduz este objetivo ao estabelecer uma regra de competência geral a favor dos tribunais do Estado‑Membro onde a criança tem a sua residência habitual à data em que o processo é instaurado no tribunal. Com efeito, devido à sua proximidade geográfica, esses tribunais estão geralmente mais bem colocados para apreciar as medidas a adotar no interesse da criança [v., neste sentido, Acórdão de 27 de abril de 2023, CM (Direito de visita de uma criança que mudou de residência), C‑372/22, EU:C:2023:364, n.os 21 e 22 e jurisprudência referida].

34

Todavia, em conformidade com o artigo 8.o, n.o 2, do Regulamento n.o 2201/2003, a regra de competência enunciada no n.o 1 deste artigo aplica‑se sem prejuízo, nomeadamente, do artigo 10.o desse regulamento.

35

Ora, segundo este artigo 10.o, a competência em matéria de responsabilidade parental é, regra geral, atribuída aos tribunais do Estado‑Membro onde a criança residia habitualmente imediatamente antes da deslocação ou retenção ilícitas.

36

Esta disposição implementa um dos objetivos do Regulamento n.o 2201/2003, que consiste em dissuadir deslocações ou retenções ilícitas de crianças entre Estados‑Membros (v., neste sentido, Acórdão de 23 de dezembro de 2009, Detiček, C‑403/09 PPU, EU:C:2009:810, n.o 49). Tem, pois, por objetivo neutralizar o efeito que implicaria a aplicação da regra de competência geral, estabelecida no artigo 8.o, n.o 1, deste regulamento, em caso de deslocação ilícita da criança em causa, a saber, a transferência da competência para o Estado‑Membro no qual essa criança passou a ter a sua nova residência habitual, na sequência da sua deslocação ou retenção ilícita. Uma vez que há o risco de esta transferência de competência conferir uma vantagem processual ao autor do ato ilícito, o artigo 10.o do referido regulamento prevê que os tribunais do Estado‑Membro onde a criança residia habitualmente imediatamente antes da deslocação ou retenção ilícitas continuam, em princípio, a ser competentes para decidir sobre o mérito do processo em causa (v., neste sentido, Acórdãos de 1 de julho de 2010, Povse, C‑211/10 PPU, EU:C:2010:400, n.os 41 e 44, e de 24 de março de 2021, MCP, C‑603/20 PPU, EU:C:2021:231, n.o 45).

37

O artigo 15.o, n.o 1, alínea b), do Regulamento n.o 2201/2003 prevê, pelo seu lado, a possibilidade, a título excecional, de um tribunal de um Estado‑Membro, competente para conhecer do mérito de um processo em matéria de responsabilidade parental, pedir a remessa desse processo, ou de uma parte específica deste, a um tribunal de outro Estado‑Membro com o qual a criança tenha uma ligação particular, se este último tribunal se encontrar mais bem colocado para dele conhecer, e se tal servir o superior interesse da criança.

38

Para responder à primeira questão prejudicial, há portanto que determinar se a faculdade de pedir a transferência assim reconhecida, a título excecional, pelo artigo 15.o, n.o 1, alínea b), do Regulamento n.o 2201/2003, pode ser exercida quando o tribunal de um Estado‑Membro é competente para conhecer do mérito de um processo em matéria de responsabilidade parental nos termos do artigo 10.o desse regulamento e o tribunal para o qual o processo será remetido se encontra no Estado‑Membro para o qual a criança em causa foi deslocada ilicitamente por um dos pais.

39

A este respeito, importa recordar que, segundo jurisprudência constante, para a interpretação de uma disposição do direito da União, há que ter em conta não só os seus termos mas também o seu contexto e os objetivos prosseguidos pela regulamentação de que faz parte (v., neste sentido, Acórdão de 1 de outubro de 2014, E., C‑436/13, EU:C:2014:2246, n.o 37 e jurisprudência referida).

40

Quanto, em primeiro lugar, à redação e ao contexto do artigo 15.o do Regulamento n.o 2201/2003, há que recordar, antes de mais, que este artigo completa as regras de competência enunciadas nos artigos 8.o a 14.o desse regulamento, através de um mecanismo de cooperação que permite ao tribunal de um Estado‑Membro, competente para conhecer do processo em virtude de uma dessas regras, proceder, excecionalmente, à transferência para um tribunal de outro Estado‑Membro (v., neste sentido, Acórdão de 19 de novembro de 2015, P, C‑455/15 PPU, EU:C:2015:763, n.o 44).

41

Segundo, este mesmo artigo 15.o do Regulamento n.o 2201/2003 precisa, nos seus n.os 2 a 6, as modalidades dessa transferência. Assim, em conformidade com o n.o 5, o tribunal do Estado‑Membro competente para conhecer do mérito continua a ser competente, nos termos dos artigos 8.o a 14.o deste regulamento, no caso de os tribunais do outro Estado‑Membro não se terem declarado competentes no prazo de seis semanas a contar da data em que tiver sido instaurado o processo.

42

Ao fazê‑lo, como o advogado‑geral salientou, em substância, no n.o 59 das suas conclusões, o próprio legislador da União Europeia previu que a faculdade de transferência enunciada no artigo 15.o, n.o 1, alínea b), do Regulamento n.o 2201/2003 possa ser exercida por um tribunal de um Estado‑Membro cuja competência assente no artigo 10.o desse regulamento. [v., por analogia, Acórdão de 27 de abril de 2023, CM (Direito de visita de uma criança que mudou de residência), C‑372/22, EU:C:2023:364, n.o 38].

43

Terceiro, não resulta da redação ou do contexto do artigo 15.o do Regulamento n.o 2201/2003 que um tribunal de um Estado‑Membro, competente para decidir sobre o mérito em matéria de responsabilidade parental nos termos do artigo 10.o desse regulamento, deva renunciar a invocar a faculdade de pedir a transferência prevista no artigo 15.o, n.o 1, alínea b), do referido regulamento quando o tribunal chamado, sendo caso disso, a exercer a sua competência se encontra no Estado‑Membro para o qual a criança em causa foi deslocada ilicitamente por um dos pais.

44

Pelo contrário, importa salientar que, quando o tribunal competente para decidir sobre o mérito de um litígio relativo à responsabilidade parental retira essa competência do artigo 10.o do Regulamento n.o 2201/2003, o tribunal de outro Estado‑Membro, que possa ser considerando mais bem colocado para decidir desse litígio, no sentido do artigo 15.o desse regulamento, será, regra geral, um tribunal do Estado‑Membro para o qual a criança foi deslocada ilicitamente. Logo, excluir que este artigo 15.o se aplica a uma situação como a referida no número anterior do presente acórdão privaria de uma grande parte da sua eficácia a faculdade de que dispõe um tribunal competente para decidir sobre o mérito nos termos do artigo 10.o do referido regulamento, ao abrigo do artigo 15.o, n.o 1, alínea b), desse mesmo regulamento, de pedir a remessa do processo a um tribunal de outro Estado‑Membro mais bem colocado para dele conhecer.

45

Em segundo lugar, no que respeita aos objetivos prosseguidos pelo Regulamento n.o 2201/2003, importa recordar que as regras de competência que estabelece são definidas em função do superior interesse da criança, que constitui uma consideração primordial [v., neste sentido, Acórdãos de 12 de novembro de 2014, L, C‑656/13, EU:C:2014:2364, n.o 48, e de 1 de agosto de 2022, MPA (Residência habitual — Estado terceiro), C‑501/20, EU:C:2022:619, n.o 71 e jurisprudência referida]. Além disso, como salienta o seu considerando 33, o referido regulamento reconhece os direitos fundamentais e os princípios consagrados na Carta dos Direitos Fundamentais, tendo como objetivo, designadamente, garantir o pleno respeito dos direitos fundamentais da criança enunciados no artigo 24.o daquela.

46

De resto, resulta da jurisprudência do Tribunal de Justiça que a exigência prevista no artigo 15.o, n.o 1, do Regulamento n.o 2201/2003, segundo a qual a remessa de um processo a um tribunal de outro Estado‑Membro deve servir o superior interesse da criança, constitui uma expressão do princípio orientador que guiou o legislador da União na conceção deste regulamento e que deve estruturar a sua aplicação nos processos de responsabilidade parental por ele abrangidos (v., neste sentido, Acórdão de 27 de outubro de 2016, D., C‑428/15, EU:C:2016:819, n.os 43 e 63).

47

Esta exigência significa necessariamente que deve ser tido em consideração o direito fundamental da criança, enunciado no artigo 24.o, n.o 3, da Carta dos Direitos Fundamentais, de manter regularmente relações pessoais e contactos diretos com ambos os progenitores (v., neste sentido, Acórdão de 23 de dezembro de 2009, Detiček, C‑403/09 PPU, EU:C:2009:810, n.o 56).

48

É verdade que a deslocação ilícita de uma criança, na sequência de uma decisão unilateral de um dos seus progenitores, priva essa criança, na maior parte dos casos, da possibilidade de manter regularmente relações pessoais e contactos diretos com o outro progenitor (v., neste sentido, Acórdão de 1 de julho de 2010, Povse, C‑211/10 PPU, EU:C:2010:400, n.o 64 e jurisprudência referida).

49

Todavia, esta circunstância não implica que o tribunal competente nos termos do artigo 10.o do Regulamento n.o 2201/2003 não consiga ilidir, tendo em conta o superior interessa da criança, a forte presunção a favor da manutenção da sua própria competência que decorre deste regulamento (v., neste sentido, Acórdão de 27 de outubro de 2016, D., C‑428/15, EU:C:2016:819, n.o 49) e deva sistematicamente renunciar a exercer a faculdade de pedir a transferência prevista no artigo 15.o, n.o 1, alínea b), desse regulamento quando o tribunal para quem a equaciona fazer se encontra no Estado‑Membro para o qual a criança foi deslocada ilicitamente por um dos pais.

50

Implica, em contrapartida, que o tribunal competente para conhecer do mérito, nos termos do artigo 10.o do Regulamento n.o 2201/2003 se certifique, à luz das circunstâncias concretas do processo, de que a transferência equacionada não é suscetível de ter um impacto negativo nas relações afetivas, familiares e sociais da criança em causa ou na sua situação material (v., neste sentido, Acórdão de 27 de outubro de 2016, D., C‑428/15, EU:C:2016:819, n.os 58 e 59), e pondere, de forma equilibrada e razoável, no superior interesse da criança, todos os interesses em jogo, com base em considerações objetivas relativas à própria pessoa da criança e ao seu meio social (v., neste sentido, Acórdão de 23 de dezembro de 2009, Detiček, C‑403/09 PPU, EU:C:2009:810, n.o 60). Assim, se este tribunal chegar à conclusão de que a remessa do processo a um tribunal de outro Estado‑Membro é contrária ao superior interesse da criança, deverá excluí-la.

51

Logo, não é contrário aos objetivos prosseguidos pelo Regulamento n.o 2201/2003 que um tribunal competente em matéria de responsabilidade parental com base no artigo 10.o desse regulamento possa, a título excecional e após ter devidamente em conta, de forma equilibrada e razoável, o superior interesse da criança, pedir a remessa do processo que lhe foi submetido a um tribunal do Estado‑Membro para o qual a criança em causa foi deslocada ilicitamente por um dos pais.

52

Em terceiro e último lugar, é irrelevante a este propósito a circunstância de que o tribunal para quem se equaciona fazer a transferência tenha adotado medidas provisórias urgentes relativas ao direito de visita do pai dessa criança com fundamento no artigo 20.o do Regulamento n.o 2201/2003, como as partes no processo principal alegaram na audiência no Tribunal de Justiça a propósito das decisões tomadas pelo Okresný súd Bratislava V (Tribunal de Primeira Instância de Bratislava V).

53

Com efeito, importa recordar que este artigo 20.o não pode ser considerado uma disposição atributiva de competência para conhecimento do mérito de um processo em matéria de responsabilidade parental (v., neste sentido, Acórdãos de 15 de julho de 2010, Purrucker, C‑256/09, EU:C:2010:437, n.os 61 e 62, e de 9 de novembro de 2010, Purrucker, C‑296/10, EU:C:2010:665, n.os 69 e 70).

54

Por conseguinte, mesmo admitindo que as decisões tomadas pelo Okresný súd Bratislava V (Tribunal de Primeira Instância de Bratislava V) tenham sido adotadas com base no artigo 20.o do Regulamento n.o 2201/2003, não é menos verdade que esta situação se distingue da que deu lugar ao Acórdão de 4 de outubro de 2018, IQ (C‑478/17, EU:C:2018:812). Efetivamente, no processo que deu origem a este acórdão, os tribunais envolvidos dos dois Estados‑Membros em causa eram ambos competentes quanto ao mérito em matéria de responsabilidade parental com base, respetivamente, no artigo 8.o, n.o 1, e no artigo 12.o do Regulamento n.o 2201/2003, o que leva o Tribunal de Justiça a excluir a possibilidade de exercício, entre estes tribunais, da faculdade de pedir a transferência instituída no artigo 15.o desse regulamento.

55

Tendo em conta o exposto, há que responder à primeira questão que o artigo 15.o do Regulamento n.o 2201/2003 deve ser interpretado no sentido de que o tribunal de um Estado‑Membro competente para decidir sobre o mérito de um processo em matéria de responsabilidade parental nos termos do artigo 10.o desse regulamento pode excecionalmente pedir a remessa desse processo, prevista no artigo 15.o, n.o 1, alínea b), do referido regulamento, a um tribunal do Estado‑Membro para o qual essa criança foi deslocada ilicitamente por um dos pais.

Quanto à segunda questão

56

Com a sua segunda questão o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se o artigo 15.o, n.o 1, do Regulamento n.o 2201/2003 deve ser interpretado no sentido de que as únicas condições às quais está sujeita a possibilidade de o tribunal de um Estado‑Membro competente para decidir quanto ao mérito de um processo em matéria de responsabilidade parental pedir a remessa do processo a um tribunal de outro Estado‑Membro estão expressamente enunciadas nessa disposição, ou se esse tribunal deve também ter em conta outras circunstâncias, como a existência de um procedimento de regresso da criança instaurado ao abrigo do artigo 8.o, primeiro e terceiro parágrafos, alínea f), da Convenção da Haia de 1980 e que ainda não foi objeto de qualquer decisão definitiva.

57

Como resulta da redação do artigo 15.o, n.o 1, do Regulamento n.o 2201/2003, o tribunal de um Estado‑Membro só pode pedir ao tribunal de outro Estado‑Membro para exercer a sua competência se estiverem reunidas as três condições cumulativas enumeradas, de forma exaustiva, nesta disposição, ou seja, se existir uma «ligação particular» entre o menor e outro Estado‑Membro, se o tribunal competente para conhecer do mérito do processo considerar que um tribunal desse outro Estado‑Membro se encontra mais bem colocado para conhecer do processo e a transferência servir o superior interesse da criança em causa, no sentido de que não é suscetível de ter um impacto negativo na situação desta última [v., neste sentido, Acórdão de 27 de outubro de 2016, D., C‑428/15, EU:C:2016:819, n.os 50, 56 e 58, e Despacho de 10 de julho de 2019, EP (Responsabilidade parental e tribunal mais bem colocado), C‑530/18, EU:C:2019:583, n.o 31].

58

Quanto à eventual consideração, neste quadro, de um pedido de transferência baseado nas estipulações da Convenção da Haia de 1980, há que recordar que, embora estas estipulações não prevaleçam, em conformidade com o artigo 60.o do Regulamento n.o 2201/2003, sobre as disposições desse regulamento nas relações entre os Estados‑Membros nas matérias reguladas por este último, têm uma relação estreita com essas disposições, pelo que podem ter incidência no sentido, no alcance e na eficácia das referidas disposições [v., neste sentido, Parecer 1/13 (Adesão de Estados terceiros à Convenção da Haia), de 14 de outubro de 2014, EU:C:2014:2303, n.os 85 e 87, e Acórdão de 16 de fevereiro de 2023, Rzecznik Praw Dziecka e o. (Suspensão da decisão de regresso), C‑638/22 PPU, EU:C:2023:103, n.o 63].

59

Resulta do exposto que a existência de um pedido de regresso baseado na Convenção da Haia de 1980, não tendo sido objeto de uma decisão definitiva no Estado‑Membro para o qual a criança em causa foi deslocada ilicitamente por um dos pais, não pode obstar, enquanto tal, a que se exerça a faculdade de pedir a transferência prevista no artigo 15.o, n.o 1, alínea b), do Regulamento n.o 2201/2003. Esta circunstância deve, no entanto, ser tida em conta pelo tribunal competente para determinar se as três condições exigidas por esta disposição para proceder à remessa do processo a um tribunal de outro Estado‑Membro estão satisfeitas.

60

Quanto à consideração concreta dessa circunstância no âmbito da apreciação das três condições em causa pelo tribunal competente para conhecer do mérito, importa fornecer os seguintes esclarecimentos.

61

Em primeiro lugar, no que respeita à condição segundo a qual a criança deve ter uma «ligação particular» com o Estado‑Membro em que se encontra o tribunal para o qual a transferência se equaciona, há que recordar que o artigo 15.o, n.o 3, do Regulamento n.o 2201/2003 prevê, nas suas alíneas a) a e), de modo exaustivo, cinco critérios alternativos que permitem considerar que esta condição está preenchida [v., neste sentido, Despacho de 10 de julho de 2019, EP (Responsabilidade parental e tribunal mais bem colocado), C‑530/18, EU:C:2019:583, n.os 27 e 28, e jurisprudência referida]. Ora, entre estes critérios figura o enunciado na alínea c) da referida disposição, segundo o qual a criança é nacional desse Estado‑Membro.

62

No caso em apreço, resulta dos elementos dos autos de que o Tribunal de Justiça dispõe que as crianças em causa no processo principal são nacionais eslovacos, pelo que se deve, em conformidade com o artigo 15.o, n.o 3, alínea c), do Regulamento n.o 2201/2003, considerar que têm uma ligação particular com a Eslováquia para efeitos do artigo 15.o, n.o 1, desse regulamento, independentemente até da existência de um procedimento de regresso instaurado pelo seu pai ao abrigo da Convenção da Haia de 1980.

63

Em segundo lugar, quanto à condição segundo a qual o tribunal para o qual se equaciona a transferência deve estar «mais bem colocado» para conhecer do processo, importa recordar, desde logo, que um tribunal que equaciona proceder a tal transferência deve garantir que esta é suscetível de acarretar um valor acrescentado real e concreto para a adoção de uma decisão relativa à criança, em comparação com a hipótese de o manter consigo. Neste quadro, pode ter em conta, entre outros elementos, regras processuais do outro Estado‑Membro, como as aplicáveis à recolha das provas necessárias à tramitação do processo. Em contrapartida, o tribunal competente não deveria tomar em consideração, para efeitos dessa avaliação, o direito material desse outro Estado‑Membro que seria aplicável pelo tribunal deste último, no caso de o processo lhe ser remetido. Com efeito, essa tomada em consideração seria contrária aos princípios da confiança mútua entre Estados‑Membros e do reconhecimento mútuo das decisões judiciais que constituem a base do Regulamento n.o 2201/2003 (v., neste sentido, Acórdão de 27 de outubro de 2016, D., C‑428/15, EU:C:2016:819, n.os 57 e 61).

64

Segundo, uma vez que a transferência prevista no artigo 15.o, n.o 1, alínea b), do Regulamento n.o 2201/2003 se arrisca, manifestamente, a privar o pai que pede o regresso da criança da possibilidade de fazer valer os seus argumentos de um modo efetivo perante o tribunal para o qual se equaciona a transferência, este risco obsta à declaração de que este tribunal estaria «mais bem colocado» para conhecer do processo, na aceção desta disposição.

65

No caso em apreço, nada nos autos no Tribunal de Justiça parece sugerir que, em caso de transferência para o Okresný súd Bratislava V (Tribunal de Primeira Instância de Bratislava V), TT seria privado da possibilidade de fazer valer os seus argumentos de modo efetivo, o que incumbe ao órgão jurisdicional de reenvio verificar.

66

Terceiro, como o advogado‑geral salientou no n.o 80 das suas conclusões, a transferência pode ser suscetível de trazer um valor acrescentado real e concreto para a adoção de uma decisão relativa à criança quando o tribunal para o qual se equaciona a transferência adotou, a pedido das partes no processo principal e nos termos das regras de processo aplicáveis, várias medidas provisórias urgentes baseadas, com fundamento, nomeadamente, no artigo 20.o do Regulamento n.o 2201/2003. É certo, como recordado no n.o 53 do presente acórdão, que esta última disposição não é atributiva de competência para conhecer do mérito de um processo em matéria de responsabilidade parental. Todavia, não se pode excluir que, à luz dos elementos assim levados ao seu conhecimento pelos interessados, o referido tribunal esteja em melhores condições para apreender todas as circunstâncias factuais que rodeiam a vida e as necessidades da criança em causa e para tomar, tendo em conta o critério da proximidade, as decisões adequadas a seu respeito.

67

Quarto, uma vez que foi apresentado um pedido de regresso, baseado nas estipulações da Convenção da Haia de 1980, às autoridades competentes do Estado‑Membro para o qual a criança em causa foi deslocada ilicitamente, nenhum tribunal desse Estado‑Membro pode ser considerado o «mais bem colocado» para conhecer do processo, na aceção do artigo 15.o, n.o 1, do Regulamento n.o 2201/2003, antes do prazo de seis semanas, previsto no artigo 11.o dessa Convenção e no artigo 11.o desse regulamento, se esgotar. Além disso, o atraso substancial dos tribunais do referido Estado‑Membro na decisão deste pedido de regresso pode constituir um elemento em desfavor da declaração de que esses tribunais são os mais bem colocados para decidir sobre o mérito do direito de guarda.

68

Com efeito, como resulta do artigo 16.o da referida Convenção, depois de terem sido informadas da transferência ilícita de uma criança, as autoridades judiciais do Estado Contratante para onde a criança tenha sido levada não poderão tomar decisões sobre o fundo do direito de custódia sem que seja provado, nomeadamente, não estarem reunidas as condições para regresso da criança. Cabe, portanto, ao órgão jurisdicional de reenvio ter particularmente em conta este elemento aquando da sua apreciação da segunda condição enunciada no artigo 15.o, n.o 1, do Regulamento n.o 2201/2003.

69

Em terceiro lugar, o mesmo se aplica no que respeita à apreciação da condição relativa ao superior interesse da criança, que não se pode abstrair, à luz do artigo 16.o da Convenção da Haia de 1980, da impossibilidade temporária dos tribunais do Estado‑Membro para o qual a criança foi deslocada ilicitamente por um dos pais de adotarem uma decisão quanto ao mérito do direito de guarda, em conformidade com este interesse, antes de o tribunal desse Estado‑Membro, a quem foi apresentado o pedido de regresso da criança, ter, pelo menos, decidido este.

70

Tendo em conta as considerações expostas, há que responder à segunda questão que o artigo 15.o, n.o 1, do Regulamento n.o 2201/2003 deve ser interpretado no sentido de que as únicas condições a que está sujeita a possibilidade de o tribunal de um Estado‑Membro competente para decidir sobre o mérito de um processo em matéria de responsabilidade parental pedir a remessa desse processo a um tribunal de outro Estado‑Membro são as expressamente enunciadas nessa disposição. Aquando da análise das condições relativas, por um lado, à existência, neste último Estado‑Membro, de um tribunal mais bem colocado para conhecer do processo e, por outro, ao superior interesse da criança, o tribunal do primeiro Estado‑Membro deve ter em consideração a existência de um procedimento de regresso da criança instaurado ao abrigo do artigo 8.o, primeiro parágrafo, e do artigo 8.o, terceiro parágrafo, alínea f), da Convenção da Haia de 1980, que não foi ainda objeto de qualquer decisão definitiva no Estado‑Membro para o qual a referida criança foi deslocada ilicitamente por um dos pais.

Quanto às despesas

71

Revestindo o processo, quanto às partes na causa principal, a natureza de incidente suscitado perante o órgão jurisdicional de reenvio, compete a este decidir quanto às despesas. As despesas efetuadas pelas outras partes para a apresentação de observações ao Tribunal de Justiça não são reembolsáveis.

 

Pelos fundamentos expostos, o Tribunal de Justiça (Quarta Secção) declara:

 

1)

O artigo 15.o do Regulamento (CE) n.o 2201/2003 do Conselho, de 27 de novembro de 2003, relativo à competência, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria matrimonial e em matéria de responsabilidade parental e que revoga o Regulamento (CE) n.o 1347/2000,

deve ser interpretado no sentido de que:

o tribunal de um Estado‑Membro competente para decidir sobre o mérito de um processo em matéria de responsabilidade parental nos termos do artigo 10.o desse regulamento pode excecionalmente pedir a remessa desse processo, prevista no artigo 15.o, n.o 1, alínea b), do referido regulamento, a um tribunal do Estado‑Membro para o qual essa criança foi deslocada ilicitamente por um dos pais.

 

2)

O artigo 15.o, n.o 1, do Regulamento n.o 2201/2003

deve ser interpretado no sentido de que:

as únicas condições a que está sujeita a possibilidade de o tribunal de um Estado‑Membro competente para decidir sobre o mérito de um processo em matéria de responsabilidade parental pedir a remessa desse processo a um tribunal de outro Estado‑Membro são as expressamente enunciadas nessa disposição. Aquando da análise das condições relativas, por um lado, à existência, neste último Estado‑Membro, de um tribunal mais bem colocado para conhecer do processo e, por outro, ao superior interesse da criança, o tribunal do primeiro Estado‑Membro deve ter em consideração a existência de um procedimento de regresso da criança instaurado ao abrigo do artigo 8.o, primeiro parágrafo, e do artigo 8.o, terceiro parágrafo, alínea f), da Convenção sobre os Aspetos Civis do Rapto Internacional de Crianças, celebrada na Haia, em 25 de outubro de 1980, que não foi ainda objeto de qualquer decisão definitiva no Estado‑Membro para o qual a referida criança foi deslocada ilicitamente por um dos pais.

 

Assinaturas


( *1 ) Língua do processo: alemão.