ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Quarta Secção)

14 de julho de 2022 ( *1 )

«Reenvio prejudicial — Competência, reconhecimento e execução de decisões em matéria matrimonial e em matéria de responsabilidade parental — Responsabilidade parental — Regulamento (CE) n.o 2201/2003 — Artigo 8.o, n.o 1, e artigo 61.o, alínea a) — Competência geral — Princípio da perpetuatio fori — Transferência, no decurso da instância, da residência habitual de uma criança de um Estado‑Membro da União Europeia para um Estado terceiro que é parte na Convenção de Haia de 1996»

No processo C‑572/21,

que tem por objeto um pedido de decisão prejudicial apresentado, nos termos do artigo 267.o TFUE, pelo Högsta domstolen (Supremo Tribunal, Suécia), por Decisão de 14 de setembro de 2021, que deu entrada no Tribunal de Justiça em 16 de setembro de 2021, no processo

CC

contra

VO,

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Quarta Secção),

composto por: C. Lycourgos, presidente de secção, S. Rodin, J.‑C. Bonichot, L. S. Rossi (relatora) e O. Spineanu‑Matei, juízes,

advogado‑geral: M. Szpunar,

secretário: A. Calot Escobar,

vistos os autos,

vistas as observações apresentadas:

em representação do Governo alemão, por J. Möller, U. Bartl e M. Hellmann, na qualidade de agentes,

em representação do Governo francês, por A. Daniel e A.‑L. Desjonquères, na qualidade de agentes,

em representação da Comissão Europeia, por P. Carlin e W. Wils, na qualidade de agentes,

vista a decisão tomada, ouvido o advogado‑geral, de julgar a causa sem apresentação de conclusões,

profere o presente

Acórdão

1

O pedido de decisão prejudicial tem por objeto a interpretação do artigo 8.o, n.o 1, e do artigo 61.o do Regulamento (CE) n.o 2201/2003 do Conselho, de 27 de novembro de 2003, relativo à competência, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria matrimonial e em matéria de responsabilidade parental e que revoga o Regulamento (CE) n.o 1347/2000 (JO 2003, L 338, p. 1).

2

Este pedido foi apresentado no âmbito de um litígio que opõe CC a VO a respeito do pedido apresentado por este último destinado a obter a guarda de M, filho de ambos, na Suécia.

Quadro jurídico

Direito internacional

3

A Convenção Relativa à Competência, à Lei Aplicável, ao Reconhecimento, à Execução e à Cooperação em Matéria de Responsabilidade Parental e Medidas de Proteção das Crianças, celebrada em Haia, em 19 de outubro de 1996 (a seguir «Convenção de Haia de 1996»), foi ratificada ou foi objeto de adesão por todos os Estados‑Membros da União. A Federação da Rússia aderiu igualmente a esta Convenção em 2012 e está em vigor nesse país desde 1 de junho de 2013.

4

O quarto considerando da Convenção de Haia de 1996 tem a seguinte redação:

«Confirmando que os melhores interesses da criança devem constituir consideração primordial».

5

Incluído no capítulo II desta Convenção, sob a epígrafe «Competência», o seu artigo 5.o dispõe:

«1.   As autoridades jurídicas ou administrativas do Estado Contratante no qual a criança tem a sua residência habitual possuem competência para tomar as medidas necessárias à proteção da pessoa ou bens da criança.

2.   Com ressalva do artigo 7.o, em caso de mudança da residência habitual da criança para outro Estado Contratante, as autoridades do Estado da nova residência habitual terão a competência.»

6

O artigo 52.o, n.os 2 a 4, da Convenção de Haia de 1996 enuncia:

«2.   Esta Convenção não prejudica a possibilidade de um ou mais Estados Contratantes concluírem acordos que contenham, relativamente a crianças habitualmente residentes em qualquer dos Estados Partes desses acordos, disposições em matérias reguladas por esta Convenção.

3.   Os Acordos a serem concluídos por um ou mais Estados Contratantes relativos a questões no âmbito desta Convenção não prejudicam, nas relações destes Estados com outros Estados Contratantes, a aplicação das disposições da presente Convenção.

4.   Os números precedentes aplicam‑se, igualmente, às leis uniformes baseadas na existência de ligações especiais, de natureza regional ou de outra natureza, entre os Estados em questão.»

Direito da União

7

Os considerandos 12 e 33 do Regulamento n.o 2201/2003 têm a seguinte redação:

«(12)

As regras de competência em matéria de responsabilidade parental do presente regulamento são definidas em função do superior interesse da criança e, em particular, do critério da proximidade. Por conseguinte, a competência deverá ser, em primeiro lugar, atribuída aos tribunais do Estado‑Membro de residência habitual da criança, exceto em determinados casos de mudança da sua residência habitual ou na sequência de um acordo entre os titulares da responsabilidade parental.

[…]

(33)

O presente regulamento reconhece os direitos fundamentais e os princípios consagrados na Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia; pretende, designadamente, garantir o pleno respeito dos direitos fundamentais da criança enunciados no artigo 24.o da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia[.]»

8

O artigo 1.o, n.os 1 e 2, deste regulamento dispõe:

«1.   O presente regulamento é aplicável, independentemente da natureza do tribunal, às matérias civis relativas:

a)

Ao divórcio, à separação e à anulação do casamento;

b)

À atribuição, ao exercício, à delegação, à limitação ou à cessação da responsabilidade parental.

2.   As matérias referidas na alínea b) do n.o 1 dizem, nomeadamente, respeito:

a)

Ao direito de guarda e ao direito de visita;

[…]»

9

O artigo 8.o do referido regulamento, sob a epígrafe «Competência geral», prevê:

«1.   Os tribunais de um Estado‑Membro são competentes em matéria de responsabilidade parental relativa a uma criança que resida habitualmente nesse Estado‑Membro à data em que o processo seja instaurado no tribunal.

2.   O n.o 1 é aplicável sob reserva do disposto nos artigos 9.o, 10.o e 12.o»

10

O artigo 60.o do Regulamento n.o 2201/2003, sob a epígrafe «Relações com determinadas convenções multilaterais», prevê que, nas relações entre os Estados‑Membros, o presente regulamento prevalece sobre determinadas convenções internacionais, indicadas de forma exaustiva nesta disposição, na medida em que estas se refiram a matérias reguladas por este regulamento.

11

O artigo 61.o do referido regulamento, sob a epígrafe «Relações com a [Convenção de Haia de 1996]», dispõe:

«No que se refere às relações com a [Convenção de Haia de 1996], o presente regulamento é aplicável:

a)

Quando a criança tenha a sua residência habitual no território de um Estado‑Membro;

b)

Em relação ao reconhecimento e à execução de uma decisão proferida pelo tribunal competente de um Estado‑Membro no território de outro Estado‑Membro, mesmo se a criança em causa residir habitualmente no território de um Estado não membro que seja parte contratante na referida convenção.»

Litígio no processo principal e questão prejudicial

12

CC deu à luz a M em 2011, na Suécia. Obteve a guarda exclusiva do seu filho desde o seu nascimento. M residiu sempre na Suécia até outubro de 2019.

13

A partir de outubro de 2019, M começou a frequentar um internato no território da Federação da Rússia.

14

Em dezembro de 2019, VO, pai de M, apresentou no Tingsrätt (Tribunal de Primeira Instância, Suécia) competente um pedido para que lhe fosse atribuída, a título principal, a guarda exclusiva de M, e a residência habitual deste último fosse fixada no seu domicílio, na Suécia. CC deduziu a incompetência territorial desse tribunal pelo facto de, desde outubro de 2019, M ter a sua residência habitual na Rússia.

15

O referido tribunal julgou improcedente a exceção de incompetência suscitada por CC com o fundamento de que, no momento da propositura da ação, M não tinha transferido a sua residência habitual para a Rússia. Atribuiu, a título provisório, a guarda exclusiva de M a VO.

16

O Hovrätten över Skåne och Blekinge (Tribunal de Recurso com sede em Malmö, Suécia) confirmou a decisão do Tingsrätt (Tribunal de Primeira Instância) segundo a qual os tribunais suecos são competentes por força do artigo 8.o, n.o 1, do Regulamento n.o 2201/2003. No entanto, anulou a decisão deste último tribunal de atribuir, a título provisório, a guarda exclusiva de M a VO.

17

CC apresentou ao órgão jurisdicional de reenvio, o Högsta domstolen (Supremo Tribunal, Suécia), um pedido para que este órgão jurisdicional autorizasse o recurso da decisão do Hovrätten över Skåne och Blekinge (Tribunal de Recurso com sede em Malmö) e submetesse ao Tribunal de Justiça um pedido de decisão prejudicial sobre a interpretação do artigo 61.o do Regulamento n.o 2201/2003. Perante o órgão jurisdicional de reenvio, CC informa que intentou igualmente uma ação relativamente à guarda de M num tribunal russo, o qual, por Decisão de 20 de novembro de 2020, se declarou competente para conhecer de qualquer questão relacionada com a responsabilidade parental relativa a M.

18

Segundo o órgão jurisdicional de reenvio, as questões que se colocam são as de saber, por um lado, se o princípio da perpetuação do foro (perpetuatio fori), tal como decorre do artigo 8.o, n.o 1, do Regulamento n.o 2201/2003, se aplica em caso de mudança da residência habitual da criança para um Estado terceiro que é parte na Convenção de Haia de 1996 e, por outro, atenta a regra de prevalência prevista no artigo 61.o, alínea a), do Regulamento n.o 2201/2003, qual o momento a tomar em consideração para apreciar o lugar de residência habitual da criança e se o alcance deste artigo está limitado às relações entre os Estados‑Membros ou se tem um âmbito de aplicação mais amplo. O órgão jurisdicional de reenvio acrescenta que, embora alguns tribunais de outros Estados‑Membros tenham considerado que, em situações semelhantes, o artigo 8.o, n.o 1, do Regulamento n.o 2201/2003 não se aplica, a questão divide ainda a doutrina especializada.

19

Nestas circunstâncias, o Högsta domstolen (Supremo Tribunal) decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça a seguinte questão prejudicial:

«Um tribunal de um Estado‑Membro mantém a sua competência nos termos do artigo 8.o, n.o 1, do [Regulamento n.o 2201/2003] quando a criança em causa no processo, no decurso da instância, transfere a sua residência habitual de um Estado‑Membro para um Estado terceiro que é parte na Convenção de Haia de 1996 (v. artigo 61.o do referido regulamento)?»

Tramitação do processo no Tribunal de Justiça

20

O órgão jurisdicional de reenvio pediu que o presente processo fosse submetido à tramitação acelerada prevista no artigo 105.o do Regulamento de Processo do Tribunal de Justiça. Em apoio do seu pedido, esse órgão jurisdicional assinala que o processo principal tem por objeto uma questão de competência cuja resolução célere é primordial.

21

O artigo 105.o, n.o 1, do Regulamento de Processo prevê que, a pedido do órgão jurisdicional de reenvio ou, a título excecional, oficiosamente, o presidente do Tribunal de Justiça pode, quando a natureza do processo exija o seu tratamento dentro de prazos curtos, ouvidos o juiz‑relator e o advogado‑geral, decidir submeter um reenvio prejudicial a tramitação acelerada.

22

Em 7 de outubro de 2021, o presidente do Tribunal de Justiça decidiu, sob proposta da juíza‑relatora, ouvido o advogado‑geral, que não havia que deferir este pedido, tendo em conta, nomeadamente, a circunstância de o órgão jurisdicional de reenvio não ter fornecido nenhum elemento específico, relativo às circunstâncias concretas, suscetível de demonstrar que a natureza do processo exigia que fosse tratado o mais rapidamente possível. Com efeito, como resulta da jurisprudência do Tribunal de Justiça, o facto de o órgão jurisdicional de reenvio ser obrigado a tomar todas as medidas necessárias para assegurar uma resolução célere do processo principal não é, por si só, suficiente para justificar o recurso à tramitação acelerada em aplicação do artigo 105.o, n.o 1, do Regulamento de Processo (Acórdão de 6 de outubro de 2021, TOTO e Vianini Lavori, C‑581/20, EU:C:2021:808, n.o 29 e jurisprudência referida).

23

Contudo, o presidente do Tribunal de Justiça decidiu que o presente processo devia ser julgado prioritariamente, em aplicação do artigo 53.o, n.o 3, do Regulamento de Processo.

Quanto à questão prejudicial

Observações preliminares

24

A título preliminar, importa observar, por um lado, que a questão submetida assenta na constatação de que M, cuja guarda é, nomeadamente, objeto do processo nos tribunais suecos, transferiu efetivamente, no decurso da instância, a sua residência habitual para o território de um Estado terceiro, a saber, a Federação da Rússia, que é parte na Convenção de Haia de 1996. Na medida em que, em conformidade com a jurisprudência do Tribunal de Justiça, a residência habitual da criança, que corresponde ao lugar onde, na prática, se situa o seu centro de vida (v., neste sentido, Acórdão de 28 de junho de 2018, HR, C‑512/17, EU:C:2018:513, n.o 42), deve ser determinada com base numa análise global das circunstâncias de facto de cada caso concreto (v., neste sentido, Acórdão de 28 de junho de 2018, HR, C‑512/17, EU:C:2018:513, n.os 42 e 54), cabe, não ao Tribunal de Justiça, mas aos tribunais nacionais se certificarem da realidade da deslocação da referida residência habitual para fora do território do Estado‑Membro em causa. A este respeito, há que recordar que, além da presença física da criança no território de um Estado, devem ser tidos em consideração outros fatores suscetíveis de indicar que essa presença não tem, de modo nenhum, caráter temporário ou ocasional e traduz uma certa integração da criança num ambiente social e familiar (v., neste sentido, Acórdão de 28 de junho de 2018, HR, C‑512/17, EU:C:2018:513, n.o 41 e jurisprudência referida).

25

Por outro lado, não resulta dos autos de que dispõe o Tribunal de Justiça que M, que esteve sob a guarda exclusiva de CC desde o seu nascimento, tenha sido deslocado ilicitamente para o território da Federação da Rússia.

Quanto ao mérito

26

Com a sua questão, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se o artigo 8.o, n.o 1, do Regulamento n.o 2201/2003, lido em conjugação com o artigo 61.o, alínea a), deste regulamento, deve ser interpretado no sentido de que um tribunal de um Estado‑Membro, ao qual foi submetido um litígio em matéria de responsabilidade parental, mantém a competência para conhecer desse litígio ao abrigo deste artigo 8.o, n.o 1, quando a residência habitual da criança em causa tenha sido legalmente transferida, no decurso da instância, para o território de um Estado terceiro que é parte na Convenção de Haia de 1996.

27

Por força do artigo 8.o, n.o 1, do Regulamento n.o 2201/2003, os tribunais de um Estado‑Membro são competentes em matéria de responsabilidade parental relativa a uma criança que resida habitualmente nesse Estado‑Membro à data em que o processo seja instaurado no tribunal. Com efeito, devido à sua proximidade geográfica, esses tribunais estão geralmente em melhores condições para apreciar as medidas a adotar no interesse da criança (Acórdão de 23 de dezembro de 2009, Detiček, C‑403/09 PPU, EU:C:2009:810, n.o 36).

28

Referindo‑se ao momento em que o processo é instaurado no tribunal do Estado‑Membro, o artigo 8.o, n.o 1, do Regulamento n.o 2201/2003 constitui uma expressão do princípio da perpetuatio fori, segundo o qual esse tribunal não perde a sua competência mesmo quando se verifique uma mudança do lugar da residência habitual da criança em causa no decurso da instância.

29

Por outro lado, como o Tribunal de Justiça declarou no Acórdão de 17 de outubro de 2018, UD (C‑393/18 PPU, EU:C:2018:835, n.os 33 a 41), não decorre nem dos termos nem da sistemática do artigo 8.o, n.o 1, do Regulamento n.o 2201/2003 que se deva considerar que o âmbito de aplicação desta disposição se aplica unicamente aos litígios que envolvem relações entre tribunais de Estados‑Membros. Pelo contrário, a regra de competência geral prevista no artigo 8.o, n.o 1, deste regulamento pode aplicar‑se a litígios que envolvam relações entre os tribunais de um Estado‑Membro e os de um Estado terceiro.

30

Daqui resulta que, desde que, no momento em que o processo é instaurado no tribunal do Estado‑Membro, a criança em causa tenha a sua residência habitual no território do referido Estado‑Membro, este tribunal é, em princípio, competente em matéria de responsabilidade parental, incluindo quando o litígio envolva relações com um Estado terceiro.

31

No entanto, importa verificar, como solicita o órgão jurisdicional de reenvio, se a regra estabelecida no artigo 8.o, n.o 1, do Regulamento n.o 2201/2003 é aplicável quando o Estado terceiro, para cujo território a transferência legal da residência habitual da criança se realiza no decurso da instância, atentos os critérios indicados no n.o 24 do presente acórdão, é parte na Convenção de Haia de 1996.

32

A este respeito, há que salientar que o artigo 61.o, alínea a), do Regulamento n.o 2201/2003 prevê que, nas relações com a Convenção de Haia de 1996, o Regulamento n.o 2201/2003 é aplicável «quando a criança [tem] a sua residência habitual no território de um Estado‑Membro».

33

Resulta da redação desta disposição que a mesma regula as relações entre os Estados‑Membros, que ratificaram todos a Convenção de Haia de 1996 ou a ela aderiram, e os Estados terceiros que são igualmente partes nesta Convenção, no sentido de que a regra de competência geral prevista no artigo 8.o, n.o 1, do Regulamento n.o 2201/2003 deixa de ser aplicável quando a residência habitual da criança é transferida, no decurso da instância, do território de um Estado‑Membro para o de um Estado terceiro que é parte na referida Convenção.

34

O contexto do artigo 61.o, alínea a), do Regulamento n.o 2201/2003 corrobora esta interpretação. Por um lado, importa salientar que esta disposição não indica, contrariamente ao artigo 60.o deste regulamento, que o seu âmbito de aplicação está limitado às relações entre os Estados‑Membros.

35

Por outro lado, há que observar que, embora o artigo 8.o, n.o 1, do referido regulamento especifique, em substância, que a competência em matéria de responsabilidade parental incumbe ao tribunal do Estado‑Membro em que a criança em causa reside habitualmente, «à data em que o processo [é] instaurado no tribunal», o artigo 61.o, alínea a), do mesmo regulamento não contém a mesma especificação.

36

Daqui resulta que, contrariamente ao que o legislador da União previu no que se refere à primeira disposição, e como sublinharam os Governos alemão e francês nas suas observações escritas, a redação deste artigo 61.o, alínea a), permite considerar que a residência habitual, na aceção desta última disposição, da criança é aquela que a criança tem no momento em que o tribunal competente profere a sua decisão, pelo que se essa residência já não estiver, nesse momento, estabelecida no território de um Estado‑Membro mas no de um Estado terceiro, que seja parte na Convenção de Haia de 1996, a aplicação do artigo 8.o, n.o 1, do Regulamento n.o 2201/2003 deve ser afastada a favor das disposições desta Convenção.

37

Esta interpretação é corroborada pelos termos do artigo 61.o, alínea b), do Regulamento n.o 2201/2003, que prevê que este regulamento é aplicável «[e]m relação ao reconhecimento e à execução de uma decisão proferida pelo tribunal competente de um Estado‑Membro no território de outro Estado‑Membro, mesmo se a criança em causa residir habitualmente no território de um Estado [terceiro] que seja parte contratante na [Convenção de Haia de 1996]».

38

Assim, resulta da leitura conjugada das alíneas a) e b) do artigo 61.o do referido regulamento que o seu artigo 8.o, n.o 1, deixa de se aplicar se a residência habitual da criança tiver sido transferida para o território de um Estado terceiro que seja parte na Convenção de Haia de 1996, antes de o tribunal competente de um Estado‑Membro, ao qual foi submetido o litígio em matéria de responsabilidade parental, se ter pronunciado. Em contrapartida, caso a mudança da residência habitual da criança ocorra depois de esse tribunal ter proferido decisão, essa mudança não obsta, por força do artigo 61.o, alínea b), deste regulamento, a que as disposições do referido regulamento se apliquem ao reconhecimento e à execução dessa decisão no território de outro Estado‑Membro.

39

A limitação introduzida pelo artigo 61.o, alínea a), do Regulamento n.o 2201/2003 à aplicação do artigo 8.o, n.o 1, deste regulamento, a partir do momento em que a criança deixa de ter a sua residência habitual no território de um Estado‑Membro e passa a tê‑la no de um Estado terceiro, que seja parte na Convenção de Haia de 1996, está igualmente em conformidade com a intenção do legislador da União de não afetar as disposições desta Convenção.

40

A este respeito, importa sublinhar que, por força do artigo 5.o, n.o 2, da Convenção de Haia de 1996, em caso de mudança da residência habitual da criança para outro Estado Contratante, as autoridades do Estado da nova residência habitual terão a competência.

41

Além disso, o artigo 52.o, n.o 3, da Convenção de Haia de 1996 opõe‑se expressamente a que, no que respeita a matérias reguladas pela referida Convenção, uma outra convenção celebrada entre vários Estados Contratantes prejudique, nas relações destes Estados com outros Estados Contratantes, a aplicação das disposições da Convenção de Haia de 1996. Ora, como confirmam os n.os 170 a 173 do Relatório Explicativo desta Convenção, elaborado por P. Lagarde, o artigo 52.o, n.o 3, da mesma resulta precisamente de um compromisso entre a posição dos Estados‑Membros da União, igualmente todos parte na referida Convenção, que pretendiam poder celebrar acordos separados na matéria, como a Convenção denominada «Bruxelas II», à qual sucedeu o Regulamento n.o 2201/2003, e a dos outros Estados parte na Convenção de Haia de 1996, que tinham receio de que esses acordos separados pudessem servir de argumento aos Estados que os tinham celebrado para se desvincularem das suas obrigações para com os outros Estados parte nesta Convenção, o que a poderia enfraquecer.

42

Como o Governo francês e a Comissão alegaram com razão nas suas observações escritas, se o tribunal de um Estado‑Membro mantivesse, por força da regra da perpetuatio fori prevista no artigo 8.o, n.o 1, do Regulamento n.o 2201/2003, a sua competência, apesar da transferência legal, no decurso da instância, da residência habitual da criança para o território de um Estado terceiro, que seja parte na Convenção de Haia de 1996, tal extensão de competência colidiria tanto com o artigo 5.o, n.o 2, desta Convenção como com o seu artigo 52.o, n.o 3. Admitir esta interpretação do artigo 8.o, n.o 1, do Regulamento n.o 2201/2003, que desconsidera assim o alcance do artigo 61.o, alínea a), deste regulamento, levaria os Estados‑Membros a agirem contra as suas obrigações internacionais (v., neste sentido, Acórdão de 24 de março de 2021, MCP, C‑603/20 PPU, EU:C:2021:231, n.o 56).

43

Por último, importa precisar que afastar a aplicação do artigo 8.o, n.o 1, do Regulamento n.o 2201/2003 a favor da aplicação das disposições da Convenção de Haia de 1996 não afeta, por si só, o superior interesse da criança, devendo os tribunais dos Estados parte nesta Convenção se certificar de que este interesse é, nos termos do quarto considerando da referida Convenção, uma consideração primordial.

44

Atendendo às considerações precedentes, o artigo 8.o, n.o 1, do Regulamento n.o 2201/2003, lido em conjugação com o artigo 61.o, alínea a), deste regulamento, deve ser interpretado no sentido de que um tribunal de um Estado‑Membro ao qual foi submetido um litígio em matéria de responsabilidade parental não mantém a competência para conhecer desse litígio ao abrigo deste artigo 8.o, n.o 1, quando a residência habitual da criança em causa tenha sido transferida legalmente, no decurso da instância, para o território de um Estado terceiro que é parte na Convenção de Haia de 1996.

Quanto às despesas

45

Revestindo o processo, quanto às partes na causa principal, a natureza de incidente suscitado perante o órgão jurisdicional de reenvio, compete a este decidir quanto às despesas. As despesas efetuadas pelas outras partes para a apresentação de observações ao Tribunal de Justiça não são reembolsáveis.

 

Pelos fundamentos expostos, o Tribunal de Justiça (Quarta Secção) declara:

 

O artigo 8.o, n.o 1, do Regulamento (CE) n.o 2201/2003 do Conselho, de 27 de novembro de 2003, relativo à competência, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria matrimonial e em matéria de responsabilidade parental e que revoga o Regulamento (CE) n.o 1347/2000, lido em conjugação com o artigo 61.o, alínea a), deste regulamento, deve ser interpretado no sentido de que um tribunal de um Estado‑Membro ao qual foi submetido um litígio em matéria de responsabilidade parental não mantém a competência para conhecer desse litígio ao abrigo deste artigo 8.o, n.o 1, quando a residência habitual da criança em causa tenha sido transferida legalmente, no decurso da instância, para o território de um Estado terceiro que é parte na Convenção Relativa à Competência, à Lei Aplicável, ao Reconhecimento, à Execução e à Cooperação em Matéria de Responsabilidade Parental e Medidas de Proteção das Crianças, celebrada em Haia, em 19 de outubro de 1996.

 

Assinaturas


( *1 ) Língua do processo: sueco.