ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Grande Secção)

11 de outubro de 2016 ( *1 )

«Incumprimento de Estado — Diretiva 2004/80/CE — Artigo 12.o, n.o 2 — Regimes nacionais de indemnização das vítimas de crimes dolosos violentos que garantam uma indemnização justa e adequada — Regime nacional que não abrange todos os crimes dolosos violentos praticados no território nacional»

No processo C‑601/14,

que tem por objeto uma ação por incumprimento, nos termos do artigo 258.o TFUE, intentada em 22 de dezembro de 2014,

Comissão Europeia, representada por E. Traversa e F. Moro, na qualidade de agentes, com domicílio escolhido no Luxemburgo,

demandante,

apoiada por:

Conselho da União Europeia, representado por E. Moro, M. Chavrier e K. Pleśniak, na qualidade de agentes,

interveniente,

contra

República Italiana, representada por G. Palmieri, na qualidade de agente, assistida por G. Palatiello e E. De Bonis, avvocati dello Stato, com domicílio escolhido no Luxemburgo,

demandada,

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Grande Secção)

composto por: K. Lenaerts, presidente, A. Tizzano, vice‑presidente, L. Bay Larsen, T. von Danwitz, J. L. da Cruz Vilaça, E. Juhász, M. Berger (relatora), A. Prechal, M. Vilaras, E. Regan, presidentes de secção, A. Rosas, A. Borg Barthet, J. Malenovský, D. Šváby e C. Lycourgos, juízes,

advogado‑geral: Y. Bot,

secretário: L. Carrasco Marco, administradora,

vistos os autos e após a audiência de 29 de fevereiro de 2016,

ouvidas as conclusões do advogado‑geral na audiência de 12 de abril de 2016,

profere o presente

Acórdão

1

Com a sua petição, a Comissão Europeia pede ao Tribunal de Justiça que declare que, não tendo adotado todas as medidas necessárias para garantir a existência de um regime de indemnização das vítimas de todos os crimes dolosos violentos cometidos no seu território, a República Italiana não cumpriu a obrigação que lhe incumbe por força do disposto no artigo 12.o, n.o 2, da Diretiva 2004/80/CE do Conselho, de 29 de abril de 2004, relativa à indemnização das vítimas da criminalidade (JO 2004, L 261, p. 15).

Quadro jurídico

Direito da União

2

Os considerandos 1 a 3, 6 e 7 da Diretiva 2004/80 têm a seguinte redação:

«(1)

Um dos objetivos da [União] Europeia é abolir, entre os Estados‑Membros, os obstáculos à livre circulação das pessoas e serviços.

(2)

O Tribunal de Justiça afirmou no acórdão [de 2 de fevereiro de 1989, Cowan (C‑186/87, EU:C:1989:47)] que, quando o direito [da União] assegura a uma pessoa singular a liberdade de se deslocar a outro Estado‑Membro, a proteção da integridade física desta pessoa no Estado‑Membro em causa, em igualdade de circunstâncias com os nacionais e os residentes, constitui o corolário dessa liberdade de circulação. A realização deste objetivo deverá incluir medidas destinadas a facilitar a indemnização das vítimas da criminalidade.

(3)

Na sua reunião de Tampere de 15 e 16 de outubro de 1999, o Conselho Europeu apelou à elaboração de normas mínimas sobre a proteção das vítimas da criminalidade, em especial sobre o seu acesso à justiça e os seus direitos a uma indemnização por danos, incluindo as despesas de justiça.

[...]

(6)

As vítimas da criminalidade na União Europeia deveriam ter direito a uma indemnização justa e adequada pelos prejuízos que sofreram, independentemente do local da [União] Europeia onde a infração foi cometida.

(7)

A presente diretiva estabelece um sistema de cooperação destinado a facilitar o acesso à indemnização às vítimas da criminalidade em situações transfronteiras, o qual deverá funcionar com base nos regimes dos Estados‑Membros sobre indemnização das vítimas da criminalidade violenta internacional cometida nos respetivos territórios. Por conseguinte, deverá existir um mecanismo de indemnização em todos os Estados‑Membros.»

3

O artigo 1.o da Diretiva 2004/80, que figura no seu capítulo I intitulado «Acesso à indemnização em situações transfronteiras», dispõe:

«Os Estados‑Membros asseguram que, no caso de ser cometido um crime doloso violento num Estado‑Membro diferente daquele em que o requerente de indemnização tem residência habitual, o requerente tem o direito de apresentar o seu pedido a uma autoridade ou a qualquer outro organismo deste último Estado‑Membro.»

4

Nos termos do artigo 2.o desta diretiva, intitulado «Responsabilidade pelo pagamento da indemnização»:

«A indemnização deve ser paga pela autoridade competente do Estado‑Membro em cujo território o crime foi praticado.»

5

De acordo com o artigo 3.o da referida diretiva, intitulado «Autoridades responsáveis e procedimentos administrativos»:

«1.   Os Estados‑Membros devem criar ou designar uma ou mais autoridades ou quaisquer outros organismos competentes, seguidamente designados por ‘autoridade ou autoridades de assistência’, para efeitos da aplicação do disposto no artigo 1.o

2.   Os Estados‑Membros devem criar ou designar uma ou mais autoridades ou quaisquer outros organismos responsáveis pela decisão relativa aos pedidos de indemnização, seguidamente designados por ‘autoridade ou autoridades de decisão’.

[...]»

6

O artigo 12.o da mesma diretiva, que figura no seu capítulo II intitulado «Regimes nacionais de indemnização», prevê:

«1.   As regras sobre o acesso à indemnização em situações transfronteiras estipuladas pela presente diretiva deverão funcionar com base nos regimes de indemnização dos Estados‑Membros para as vítimas de crimes dolosos violentos praticados nos respetivos territórios.

2.   Todos os Estados‑Membros deverão assegurar que a sua legislação nacional preveja a existência de um regime de indemnização das vítimas de crimes dolosos violentos praticados nos respetivos territórios, que garanta uma indemnização justa e adequada das vítimas.»

7

O artigo 18.o, n.o 1, da Diretiva 2004/80 dispõe:

«Os Estados‑Membros porão em vigor as disposições legislativas, regulamentares e administrativas necessárias para dar cumprimento à presente diretiva o mais tardar até 1 de janeiro de 2006, com exceção do n.o 2 do artigo 12.o, ao qual deverá ser dado cumprimento em 1 de julho de 2005. Desse facto informarão imediatamente a Comissão.»

Direito italiano

8

A Diretiva 2004/80 foi transposta para o direito italiano pelo decreto legislativo no 204 — attuazione della direttiva 2004/80/CE relativa all’indennizzo delle vittime di reato (Decreto Legislativo n.o 204 que transpõe a Diretiva 2004/80/CE relativa à indemnização das vítimas da criminalidade), de 6 de novembro de 2007 (suplemento ordinário da GURI n.o 261, de 9 de novembro de 2007, a seguir «Decreto Legislativo n.o 204/2007»), e pelo decreto ministeriale no 222 — regolamento ai sensi dell’articolo 7 del decreto legislativo no 204/2007 (Decreto Ministerial n.o 222 — regulamento previsto no artigo 7.o do Decreto Legislativo n.o 204/2007), de 23 de dezembro de 2008 (GURI n.o 108, de 12 de maio de 2009).

9

O Decreto Ministerial n.o 222, de 23 de dezembro de 2008, tem, nomeadamente, por objeto os aspetos práticos das atividades que são da competência das procuradorias‑gerais nos tribunais de segunda instância.

10

Várias leis especiais preveem a atribuição, em certas condições, de uma indemnização, a cargo do Estado italiano, a favor das vítimas de determinados tipos de crime considerados crimes dolosos violentos, nomeadamente os relacionados com terrorismo e criminalidade organizada. O Decreto Legislativo n.o 204/2007 remete, no que se refere às condições materiais que regulam a atribuição das indemnizações, para essas leis especiais, as quais preveem as formas de indemnização das vítimas de crimes cometidos no território nacional.

Procedimento pré‑contencioso

11

Na sequência de correspondência infrutífera trocada com a República Italiana, a Comissão endereçou‑lhe, em 25 de novembro de 2011, uma notificação para cumprir na qual censurava este Estado‑Membro por não prever na sua legislação um regime geral de indemnização das vítimas de crimes dolosos violentos, contrariamente, segundo esta instituição, ao exigido no artigo 12.o, n.o 2, da Diretiva 2004/80, e o convidava a apresentar as suas observações sobre este ponto.

12

Na sua resposta de 14 de maio de 2012, a República Italiana apresentou um projeto de medidas legislativas destinadas a implementar um regime geral de indemnização. Não tendo sido apresentado um calendário legislativo para a implementação do referido projeto, a Comissão deu seguimento ao procedimento pré‑contencioso.

13

Por carta de 12 de julho de 2013, a República Italiana informou a Comissão de que o Tribunale ordinario di Firenze (Tribunal de Florença, Itália) tinha submetido ao Tribunal de Justiça um pedido de decisão prejudicial relativo à interpretação do artigo 12.o da Diretiva 2004/80. A República Italiana propôs à Comissão que aguardasse pela decisão do Tribunal de Justiça nesse processo antes de dar seguimento ao procedimento que a Comissão havia encetado.

14

No entanto, em 18 de outubro de 2013, a Comissão enviou à República Italiana um parecer fundamentado no qual convidava as autoridades italianas a adotarem, no prazo de dois meses a contar daquela data, as medidas necessárias para darem cumprimento ao artigo 12.o da Diretiva 2004/80.

15

Na sua resposta que deu entrada na Comissão em 18 de dezembro de 2013, a República Italiana recordou que considerava oportuno aguardar pela resposta do Tribunal de Justiça à questão submetida pelo Tribunale ordinario di Firenze (Tribunal de Florença). Por despacho de 30 de janeiro de 2014, C. (C‑122/13, EU:C:2014:59), o Tribunal de Justiça declarou‑se, no entanto, manifestamente incompetente para responder àquela questão.

16

Nestas condições, a Comissão decidiu intentar no Tribunal de Justiça a presente ação por incumprimento ao abrigo do disposto no artigo 258.o, segundo parágrafo, TFUE.

17

Por decisão do presidente do Tribunal de Justiça de 22 de maio de 2015, foi admitida a intervenção do Conselho da União Europeia no presente processo em apoio dos pedidos da Comissão.

Quanto à ação

Argumentos das partes

18

A Comissão alega que o artigo 12.o da Diretiva 2004/80 impõe aos Estados‑Membros que adotem um regime nacional de indemnização das vítimas de crimes dolosos violentos.

19

Esta instituição considera que o artigo 12.o, n.o 2, desta diretiva, embora não defina o conceito de «crime doloso violento», não deixa margem de apreciação aos Estados‑Membros quanto ao âmbito de aplicação do regime nacional de indemnização, e que este só pode corresponder à totalidade dos crimes dolosos violentos, definidos como tal pelo direito penal material de cada Estado‑Membro. Por conseguinte, os Estados‑Membros não podem subtrair alguns desses crimes do âmbito de aplicação da legislação nacional destinada a transpor a Diretiva 2004/80.

20

Ora, segundo a Comissão, a República Italiana limitou‑se a transpor as disposições do capítulo I da Diretiva 2004/80, que têm por objeto o acesso à indemnização em situações transfronteiras. Em contrapartida, no que se refere ao capítulo II desta diretiva, este Estado‑Membro só previu um regime de indemnização, através de várias leis especiais, a favor das vítimas de certos crimes específicos, como os atos de terrorismo ou a criminalidade organizada, não tendo implementado nenhum regime de indemnização relativamente aos crimes dolosos violentos que não são abrangidos por aquelas leis especiais, nomeadamente a violação ou outras agressões graves de natureza sexual.

21

Nestas condições, a República Italiana não cumpriu a obrigação que lhe incumbe por força do disposto no artigo 12.o, n.o 2, da Diretiva 2004/80.

22

A República Italiana começa por alegar que a ação intentada pela Comissão não corresponde às acusações contidas no parecer fundamentado de 18 de outubro de 2013. Com efeito, o referido parecer fundamentado incide apenas sobre os «crimes de homicídio e de ofensa à integridade física grave, não abrangidos pelas ‘leis especiais’» e a «violação e outras agressões graves de natureza sexual». Ora, no âmbito da presente ação, a Comissão imputou à República Italiana o facto de não ter implementado um sistema geral de indemnização das vítimas de qualquer ato de criminalidade violenta cometido no seu território, alargando assim o objeto da ação por incumprimento. Esta última é, por conseguinte, inadmissível.

23

A título subsidiário, a República Italiana recorda que a Diretiva 2004/80 foi adotada ao abrigo do artigo 308.o CE. Ora, a União não tem competência para legislar em matéria de repressão de crimes violentos regulados pelo direito comum de cada Estado‑Membro, tanto do ponto de vista processual como material, e também não tem competência para regular as consequências desses atos no plano civil. Atendendo à base jurídica da referida diretiva, esta limita‑se a impor aos Estados‑Membros que permitam que os cidadãos da União que residem noutro Estado‑Membro tenham acesso aos sistemas de indemnização já previstos na legislação de cada Estado‑Membro em benefício dos seus nacionais que sejam vítimas de crimes dolosos violentos. Ora, a República Italiana cumpriu esta obrigação através das disposições processuais do Decreto Legislativo n.o 204/2007 e do Decreto Ministerial n.o 222, de 23 de dezembro de 2008.

24

A título ainda mais subsidiário, a República Italiana alega que os Estados‑Membros conservam uma ampla margem de apreciação no que se refere à determinação das diferentes hipóteses de «crimes dolosos violentos» para as quais deve estar previsto um tipo de indemnização. Assim, os Estados‑Membros devem identificar as situações suscetíveis de ser objeto de uma indemnização.

25

Além disso, a República Italiana refere‑se ao processo legislativo que conduziu à adoção da Diretiva 2004/80, durante o qual, num primeiro momento, foi ponderado prever regras precisas relativas, nomeadamente, à fixação de normas mínimas em matéria de indemnização às vítimas da criminalidade. Todavia, esse objetivo inicial foi abandonado. Por conseguinte, o artigo 12.o desta diretiva só diz respeito aos sistemas de indemnização já previstos nos Estados‑Membros no momento da adoção da referida diretiva, e limita‑se, no seu n.o 2, a impor essa obrigação aos Estados‑Membros nos quais não existisse um sistema de indemnização. Ora, a República Italiana já previa várias formas de indemnização para diferentes tipos de crimes dolosos violentos.

26

Por último, este Estado‑Membro alega que se o artigo 12.o, n.o 2, da Diretiva 2004/80 devesse ser interpretado no sentido indicado pela Comissão, esta disposição seria inválida, na medida em que o artigo 308.o CE, por força do princípio da proporcionalidade, não pode conferir à União competência para adotar medidas relativas, nomeadamente, a questões puramente internas.

27

O Conselho alega, a título principal, que a exceção de ilegalidade invocada pela República Italiana é inadmissível. Com efeito, segundo esta instituição, um Estado‑Membro não pode invocar utilmente a ilegalidade de uma diretiva como meio de defesa contra uma ação de incumprimento assente na inexecução dessa diretiva e a República Italiana não apresentou nenhum elemento que possa demonstrar que o artigo 12.o, n.o 2, da Diretiva 2004/80, conforme interpretado pela Comissão, padece de uma irregularidade cuja gravidade é tão evidente que se deve considerar como nunca tendo produzido efeitos jurídicos.

28

A título subsidiário, o Conselho considera que a exceção de ilegalidade do artigo 12.o, n.o 2, da Diretiva 2004/80 não merece acolhimento. Com efeito, o artigo 308.o CE permite suprir a falta de poderes de atuação conferidos às instituições da União através de disposições específicas dos Tratados, uma vez que, para alcançar um dos seus objetivos, é necessária a ação prevista. Ora, a República Italiana não invoca o desrespeito destes requisitos.

Apreciação do Tribunal de Justiça

Quanto à admissibilidade

29

No que respeita à exceção de inadmissibilidade invocada pela República Italiana pelo facto de a Comissão, através da presente ação, ter ampliado o objeto do incumprimento alegado no parecer fundamentado de 18 de outubro de 2013, resulta dos termos deste último que a Comissão censurava a República Italiana por «não ter adotado as medidas necessárias para dar cumprimento ao artigo 12.o, n.os 1 e 2, da Diretiva 2004/80 [...] para garantir a existência de um regime de indemnização das vítimas de todos os crimes dolosos violentos cometidos no seu território».

30

É certo que a Comissão, naquele parecer fundamentado, também se referia ao facto de que a legislação italiana não comportava um regime de indemnização previsto «especialmente» para as vítimas dos crimes de homicídio e de ofensa à integridade física grave, que não se integram nos casos previstos nas leis especiais, e para as vítimas de violação e de outras agressões graves de natureza sexual, ou ainda ao facto de que essa legislação excluía qualquer regime de indemnização para determinados crimes «como» o homicídio e a violência sexual. Porém, resulta dos próprios termos utilizados por esta instituição nas suas referências àquela legislação que, ao proceder dessa forma, mais não queria do que apresentar uma boa ilustração das consequências concretas do facto, não contestado pela República Italiana, de que nem todos os crimes dolosos violentos estavam abrangidos por um sistema de indemnização em vigor na Itália, sem desse modo limitar o âmbito do alegado incumprimento aos meros exemplos mencionados.

31

Por conseguinte, a Comissão não ampliou, na presente ação, o objeto do alegado incumprimento quando pediu ao Tribunal de Justiça que declare que, «não tendo adotado todas as medidas necessárias para garantir a existência de um regime de indemnização para as vítimas de todos os crimes dolosos violentos cometidos no seu território, a República Italiana não cumpriu a obrigação que lhe incumbe por força do disposto no artigo 12.o, n.o 2, da Diretiva 2004/80».

32

Consequentemente, a presente ação deve ser julgada admissível.

Quanto ao mérito

33

No que se refere, em primeiro lugar, ao argumento da República Italiana segundo o qual o artigo 12.o, n.o 2, da Diretiva 2004/80, conforme interpretado pela Comissão, é inválido pelo facto de, em substância, a União não ser competente para adotar, ao abrigo do artigo 308.o CE, uma disposição que regule, nomeadamente, situações puramente internas, basta recordar que, segundo jurisprudência constante do Tribunal de Justiça, um Estado‑Membro não poderá utilmente, na inexistência de uma disposição do Tratado FUE que expressamente lho autorize, invocar a ilegalidade de uma diretiva de que é destinatário como defesa contra uma ação por incumprimento fundada na inexecução dessa diretiva. Só o poderia fazer se o ato em causa enfermasse de vícios particularmente graves e evidentes, a ponto de poder ser qualificado de ato inexistente (v., nomeadamente, acórdãos de 29 de julho de 2010, Comissão/Áustria, C‑189/09, não publicado, EU:C:2010:455, n.os 15 e 16 e jurisprudência referida, e de 5 de março de 2015, Comissão/Luxemburgo, C‑502/13, EU:C:2015:143, n.o 56).

34

Ora, não sendo necessário examinar de forma mais aprofundada os argumentos apresentados pela República Italiana em apoio de uma pretensa ilegalidade do artigo 12.o, n.o 2, da Diretiva 2004/80, há que constatar que este Estado‑Membro não apresenta nenhum elemento suscetível de demonstrar que esta disposição padece de um vício que pode pôr em causa a sua própria existência, na aceção da jurisprudência indicada no número anterior do presente acórdão.

35

Daqui resulta que é em vão que a República Italiana invoca, no âmbito da presente ação, a invalidade do artigo 12.o, n.o 2, da Diretiva 2004/80.

36

Em segundo lugar, no que respeita às obrigações que incumbem aos Estados‑Membros nos termos do artigo 12.o, n.o 2, da Diretiva 2004/80, há que tomar em consideração não apenas a redação desta disposição, mas também os objetivos prosseguidos por esta diretiva, assim como o sistema instituído pela referida diretiva, no qual se insere a mencionada disposição.

37

Nos termos do artigo 12.o, n.o 2, da Diretiva 2004/80, «[t]odos os Estados‑Membros deverão assegurar que a sua legislação nacional preveja a existência de um regime de indemnização das vítimas de crimes dolosos violentos praticados nos respetivos territórios, que garanta uma indemnização justa e adequada das vítimas».

38

Esta disposição não prevê que os Estados‑Membros possam circunscrever a aplicação do regime de indemnização que têm de implementar por força da Diretiva 2004/80 a apenas uma parte dos crimes que são considerados crimes dolosos violentos, praticados nos respetivos territórios.

39

Quanto aos objetivos prosseguidos pela Diretiva 2004/80, o seu considerando 1 faz referência à vontade da União de abolir, entre os Estados‑Membros, os obstáculos à livre circulação das pessoas.

40

A este respeito, o Tribunal de Justiça já declarou que, quando o direito da União assegura a uma pessoa singular a liberdade de se deslocar a outro Estado‑Membro, a proteção da integridade física desta pessoa no Estado‑Membro em causa, em igualdade de circunstâncias com os nacionais e os residentes, constitui o corolário dessa liberdade de circulação (acórdão de 2 de fevereiro de 1989, Cowan, C‑186/87, EU:C:1989:47, n.o 17). Neste contexto, o considerando 2 da Diretiva 2004/80 enuncia que a realização deste objetivo deverá incluir medidas destinadas a facilitar a indemnização das vítimas da criminalidade.

41

Por outro lado, o considerando 3 desta diretiva recorda que, na sua reunião de Tampere de 15 e 16 de outubro de 1999, o Conselho Europeu apelou à elaboração de normas mínimas sobre a proteção das vítimas da criminalidade, em especial sobre o seu acesso à justiça e os seus direitos a uma indemnização por danos.

42

Além disso, resulta do considerando 6 da referida diretiva que as vítimas da criminalidade na União deveriam ter direito a uma indemnização justa e adequada pelos prejuízos que sofreram, independentemente do local da União onde a infração foi cometida. Por último, o considerando 7 da mesma diretiva precisa, nomeadamente, que deverá, por conseguinte, existir um mecanismo de indemnização em todos os Estados‑Membros.

43

No que se refere ao sistema instituído pela Diretiva 2004/80, esta prevê, no seu artigo 1.o, que faz parte do seu capítulo I, relativo ao acesso à indemnização em situações transfronteiras, que no caso de ser cometido um crime doloso violento num Estado‑Membro diferente daquele em que o requerente de indemnização tem residência habitual, o requerente tem o direito de apresentar o seu pedido a uma autoridade ou a qualquer outro organismo do Estado‑Membro de residência. O artigo 2.o desta diretiva, intitulado «Responsabilidade pelo pagamento da indemnização» e que figura no mesmo capítulo I, dispõe que a indemnização deve ser paga pela autoridade competente do Estado‑Membro em cujo território o crime foi praticado.

44

Por outro lado, o artigo 12.o da Diretiva 2004/80, que constitui o seu capítulo II e é relativo aos regimes nacionais de indemnização, prevê, no seu n.o 1, que as regras desta diretiva sobre o acesso à indemnização em situações transfronteiras deverão funcionar «com base nos regimes de indemnização dos Estados‑Membros para as vítimas de crimes dolosos violentos praticados nos respetivos territórios».

45

Resulta das considerações anteriores que a Diretiva 2004/80 estabelece um sistema destinado a facilitar o acesso à indemnização em situações transfronteiras às vítimas da criminalidade, devendo este sistema funcionar com base nos regimes de indemnização dos Estados‑Membros para as vítimas dos crimes dolosos violentos praticados nos respetivos territórios. Por conseguinte, o artigo 12.o, n.o 2, desta diretiva deve ser interpretado no sentido de que se destina a assegurar ao cidadão da União o direito a uma indemnização justa e adequada pelos danos sofridos no território de um Estado‑Membro onde se encontre no âmbito do exercício do seu direito à livre circulação, impondo a cada Estado‑Membro que adote um regime de indemnização das vítimas para todos os crimes que sejam considerados crimes dolosos violentos praticados no seu território.

46

Neste contexto, no que se refere à determinação da natureza dolosa e violenta de um crime, como o advogado‑geral salientou nos n.os 69 e 83 das suas conclusões, embora os Estados‑Membros disponham, em princípio, de competência para precisar o alcance deste conceito no seu direito interno, esta competência não os autoriza, todavia, a limitar, sob pena de privar o artigo 12.o, n.o 2, da Diretiva 2004/80 do seu efeito útil, o âmbito de aplicação do regime de indemnização das vítimas a apenas alguns dos crimes que sejam considerados crimes dolosos violentos.

47

Esta interpretação não é de modo nenhum posta em causa pelo argumento, apresentado pela República Italiana, segundo o qual o legislador da União, durante o processo legislativo que conduziu à adoção da Diretiva 2004/80, abandonou o objetivo inicial de prever normas precisas em matéria de indemnização de vítimas da criminalidade.

48

Do mesmo modo, deve ser afastado o argumento, apresentado pela República Italiana, segundo o qual, no acórdão de 2 de fevereiro de 1989, Cowan (186/87, EU:C:1989:47), referido no considerando 2 da Diretiva 2004/80, o Tribunal de Justiça exigiu unicamente o respeito pelo princípio da não discriminação em razão da nacionalidade no que se refere ao acesso à indemnização das vítimas da criminalidade em situações transfronteiras e não determinou que exista uma obrigação de os Estados‑Membros preverem no seu direito interno um regime de indemnização das vítimas de qualquer forma de crime doloso violento, o que foi confirmado pelo despacho de 30 de janeiro de 2014, C. (C‑122/13, EU:C:2014:59).

49

Com efeito, é certo que o Tribunal de Justiça declarou que a Diretiva 2004/80 só prevê uma indemnização no caso de ser praticado um crime doloso violento num Estado‑Membro em que a vítima se encontra, no âmbito do exercício do seu direito à livre circulação, pelo que uma situação puramente interna não está abrangida pelo âmbito de aplicação desta diretiva (v., neste sentido, acórdãos de 28 de junho de 2007, Dell’Orto, C‑467/05, EU:C:2007:395, n.o 59, e de 12 de julho de 2012, Giovanardi e o., C‑79/11, EU:C:2012:448, n.o 37, e despacho de 30 de janeiro de 2014, C., C‑122/13, EU:C:2014:59, n.o 12). Não é menos certo que, ao fazê‑lo, o Tribunal de Justiça se limitou a precisar que o sistema de cooperação instituído pela Diretiva 2004/80 só se refere ao acesso à indemnização em situações transfronteiras, sem, todavia, excluir que o artigo 12.o, n.o 2, desta diretiva impõe a cada Estado‑Membro, para efeitos de assegurar o objetivo por si prosseguido nessas situações, que adote um regime nacional que garanta uma indemnização das vítimas de qualquer crime que seja considerado crime doloso violento no seu território.

50

Tal interpretação do artigo 12.o, n.o 2, da Diretiva 2004/80 é, de resto, conforme com o objetivo desta diretiva, que consiste em abolir, entre os Estados‑Membros, os obstáculos à livre circulação das pessoas e serviços, para melhorar o funcionamento do mercado interno.

51

No presente caso, resulta dos autos submetidos ao Tribunal de Justiça que os crimes considerados crimes dolosos violentos, como os especificados no direito italiano, não estão todos abrangidos pelo regime de indemnização em vigor em Itália, o que, de resto, a República Italiana não contesta. Assim, não tendo este Estado‑Membro implementado totalmente o artigo 12.o, n.o 2, da Diretiva 2004/80, há que julgar procedente a ação intentada pela Comissão.

52

Por conseguinte, há que constatar que a República Italiana, não tendo adotado todas as medidas necessárias para garantir a existência, em situações transfronteiras, de um regime de indemnização das vítimas de todos os crimes dolosos violentos cometidos no seu território, não cumpriu a obrigação que lhe incumbe por força do disposto no artigo 12.o, n.o 2, da Diretiva 2004/80.

Quanto às despesas

53

Nos termos do artigo 138.o, n.o 1, do Regulamento de Processo do Tribunal de Justiça, a parte vencida é condenada nas despesas se a parte vencedora o tiver requerido. Tendo a Comissão pedido a condenação da República Italiana e tendo esta sido vencida, há que condená‑la a suportar as suas próprias despesas bem como as despesas efetuadas pela Comissão.

54

Em aplicação do disposto no artigo 140.o, n.o 1, deste mesmo regulamento, as instituições que intervenham no litígio devem suportar as suas próprias despesas. Deste modo, o Conselho suporta as suas próprias despesas.

 

Pelos fundamentos expostos, o Tribunal de Justiça (Grande Secção) decide:

 

1)

A República Italiana, não tendo adotado todas as medidas necessárias para garantir a existência, em situações transfronteiras, de um regime de indemnização das vítimas de todos os crimes dolosos violentos cometidos no seu território, não cumpriu a obrigação que lhe incumbe por força do disposto no artigo 12.o, n.o 2, da Diretiva 2004/80/CE do Conselho, de 29 de abril de 2004, relativa à indemnização das vítimas da criminalidade.

 

2)

A República Italiana suporta as suas próprias despesas bem como as despesas efetuadas pela Comissão Europeia.

 

3)

O Conselho da União Europeia suporta as suas próprias despesas.

 

Assinaturas


( *1 ) Língua do processo: italiano.