ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA

20 de Fevereiro de 1979 ( *1 )

No processo 120/78,

que tem por objecto um pedido dirigido ao Tribunal de Justiça, nos termos do artigo 177o do Tratado CEE, pelo Hessisches Finanzgericht (tribunal de finanças do Land de Hesse), destinado a obter, no processo pendente neste órgão jurisdicional entre

Rewe-Zentral AG, com sede em Colónia,

e

Bundesmonopolverwaltung Für Branntwein (administração federal alemã do monopólio do álcool),

uma decisão a título prejudicial sobre a interpretação dos artigos 30.o e 37.o do Tratado CEE, relativamente ao n.o 3 do artigo 100o da lei alemã sobre o monopólio do álcool,

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA,

composto por: H. Kutscher, presidente, J. Mertens de Wilmars e Mackenzie Stuart, presidentes de secção, A. M. Donner, P. Pescatore, M. Sørensen, A. O'Keeffe, G. Bosco e A. Touffait, juízes,

advogado-geral: F. Capotorti

secretário: A. Van Houtte

profere o presente

Acórdão

(A parte relativa à matéria de facto não é reproduzida)

Fundamentos da decisão

1

Por decisão de 28 de Abril de 1978, que deu entrada no Tribunal de Justiça em 22 de Maio seguinte, o Hessisches Finanzgericht colocou, nos termos do artigo 177o do Tratado CEE, duas questões prejudiciais relativas à interpretação dos artigos 30.o e 37.o do Tratado CEE, com o objectivo de se analisar a compatibilidade com o direito comunitário de uma disposição da regulamentação alemã relativa à comercialização de bebidas espirituosas que estabelece um grau de alcoometria mínimo para determinadas categorias de produtos alcoólicos.

Resulta da decisão de reenvio que a demandante no processo principal pretende importar um lote de «cassis de Dijon», originário de França, para o comercializar na República Federal da Alemanha.

2

A demandante, tendo solicitado da administração do monopólio do álcool (Bundesmonopolverwaltung) autorização para importar o produto em causa, foi informada por aquela administração de que o referido produto, em virtude da insuficiência do seu teor em álcool, não possuía as qualidades indispensáveis para a sua comercialização na República Federal da Alemanha.

3

Esta tomada de posição da administração baseia-se no artigo 100.o do Branntweinmonopolgesetz e nas regulamentações adoptadas pela administração do monopólio nos termos dessa disposição, para efeitos de fixação dos teores mínimos em álcool de determinadas categorias de licores e outras bebidas alcoólicas (Verordnung über den Mindestweingeistgehalt von Trinkbranntweinen de 28 de Fevereiro de 1958, Bundesanzeiger n.o 48 de 11.3.1958).

Decorre das citadas disposições que a comercialização de licores de frutos, como o «cassis de Dijon», está sujeita à exigência de um teor em álcool mínimo de 25o, enquanto o teor do produto em causa, comercializado como tal livremente em França, se situa entre 15o e 20o de álcool.

4

De acordo com a demandante, a exigência feita pela regulamentação alemã de um teor mínimo em álcool tem por consequência não poderem ser escoados na República Federal da Alemanha produtos alcoólicos conhecidos originários de outros Estados-membros da Comunidade, representando assim essa disposição uma restrição à livre circulação de mercadorias entre os Estados-membros que ultrapassa o âmbito das regulamentações comerciais reservadas à sua competência.

Trata-se, em sua opinião, de uma medida de efeito equivalente a uma restrição quantitativa à importação, contrária ao artigo 30o do Tratado CEE.

Sendo, além disso, uma medida adoptada no âmbito da gestão do monopólio do álcool, a demandante entende existir também violação do artigo 37.o, de acordo com a qual os Estados-membros adaptarão progressivamente os monopólios nacionais de natureza comercial de modo a que, findo o período de transição, esteja assegurada a exclusão de toda e qualquer discriminação entre nacionais dos Estados-membros, quanto às condições de abastecimento e de comercialização.

5

Para decidir este litígio, o Hessisches Finanzgericht colocou duas questões, redigidas da seguinte forma:

«1)

Deve o conceito de medidas de efeito equivalente a restrições quantitativas à importação, na acepção do artigo 30.o do Tratado CEE, ser interpretado no sentido de que se aplica também à fixação de um teor mínimo em álcool para álcoois destinados ao consumo humano estabelecida pela lei alemã sobre o monopólio do álcool, que tem por, efeito impedir a circulação na República Federal da Alemanha de produtos tradicionais de outros Estados-membros cujo teor em álcool é inferior ao limite fixado?

2)

Está a fixação de tal teor mínimo em álcool abrangida pela noção de discriminação nas condições de abastecimento e comercialização entre nacionais dos Estados-membros, na acepção do artigo 37.o do Tratado CEE?»

6

O órgão jurisdicional nacional pretende assim obter elementos de interpretação que lhe permitam apreciar se a exigência de um teor mínimo em álcool pode ser abrangida quer pela proibição contida no artigo 30.o do Tratado de toda e qualquer medida de efeito equivalente a restrições quantitativas nas trocas comerciais entre Estados-membros, quer pela proibição de toda e qualquer discriminação nas condições de abastecimento e de comercialização entre nacionais dos Estados-membros, na acepção do artigo 37.o

Deve observar-se, a este respeito, que o artigo 37.o é uma disposição específica aos monopólios nacionais de natureza comercial.

7

Esta disposição é, assim, irrelevante face às disposições nacionais não atinentes ao exercício, pelo monopólio público, da sua função específica — a saber, direito de exclusividade — que refiram porém, de forma genérica, a produção e comercialização de bebidas alcoólicas, estejam estas ou não abrangidas pelo monopólio em causa.

Nestas condições, a incidência nas trocas comerciais intracomunitárias da medida a que se refere o órgão jurisdicional nacional deve ser exclusivamente analisada à luz das exigências decorrentes do artigo 30.o, que é objecto da primeira questão.

8

Face à inexistência de uma regulamentação comum da produção e comercialização do álcool — não tendo ainda o Conselho dado seguimento a uma proposta de regulamento que lhe foi apresentada pela Comissão em 7 de Dezembro de 1976 (JO C 309, p. 2) — compete aos Estados-membros regulamentar, cada um em seu território, tudo o que diga respeito à produção e comercialização do álcool e bebidas alcoólicas.

Os obstáculos à circulação intracomunitária decorrentes da disparidade entre legislações nacionais relativas à comercialização dos produtos em causa devem ser aceites na medida em que tais medidas possam ser consideradas necessárias para a satisfação de exigências imperativas atinentes, designadamente, à eficácia dos controlos fiscais, à protecção da saúde pública, à lealdade das transacções comerciais e à defesa dos consumidores.

9

O Governo da República Federal da Alemanha, interveniente no processo, avançou diversos argumentos que, em sua opinião, justificam a aplicação das disposições relativas ao teor mínimo em álcool das bebidas espirituosas, invocando argumentos relativos, por um lado, à salvaguarda da saúde pública e, por outro, à protecção dos consumidores face às práticas comerciais desleais.

10

No que se refere à salvaguarda da saúde pública, o Governo alemão refere que a fixação do teor mínimo em álcool pela legislação nacional visa evitar a proliferação de bebidas espirituosas no mercado nacional, em especial de bebidas espirituosas de fraco teor em álcool, produtos esses susceptíveis, em sua opinião, de provocar mais facilmente habituação do que as bebidas de teor em álcool mais elevado.

11

Estes argumentos não são decisivos na medida em que o consumidor pode obter no mercado uma gama extraordinariamente variada de produtos de fraco ou médio teor em álcool e em que, além disso, uma parte significativa das bebidas alcoólicas de forte teor em álcool, livremente comercializadas no mercado alemão, é frequentemente consumida sob forma diluída.

12

O Governo alemão argumenta ainda que a fixação de um limite inferior do teor em álcool de determinados licores visa proteger o consumidor relativamente a práticas desleais de produtores ou distribuidores de bebidas alcoólicas.

Este argumento baseia-se na consideração de que a diminuição do teor em álcool assegura uma vantagem comercial relativamente às bebidas de teor mais elevado, por o álcool constituir, na composição das bebidas, o elemento significativamente mais oneroso em virtude da elevada carga fiscal a que está sujeito.

Além disso, de acordo com o Governo alemão, o facto de se admitir a livre circulação dos produtos alcoólicos desde que cumpram, no que se refere ao teor em álcool, as normas do país de produção, tem por consequência impor na Comunidade, como norma comum de teor em álcool, o menor valor admitido num dos Estados-membros, podendo até tornar inoperantes todas as prescrições nessa matéria se alguma das regulamentações dos diversos Estados-membros não fixar qualquer limite inferior desse tipo.

13

Como foi referido pela Comissão, a fixação de valores-limite em matéria do teor em álcool das bebidas pode servir para a normalização dos produtos comercializados e das suas denominações, tendo em vista uma maior transparência das transacções comerciais e da oferta ao público.

Não se pode, porém, chegar ao ponto de considerar a fixação imperativa do teor mínimo de álcool como garantia essencial da lealdade das transacções comerciais, visto ser fácil garantir uma informação conveniente do comprador através da exigência na embalagem dos produtos da menção da proveniência e do teor em álcool.

14

Decorre do que precede que as disposições relativas ao teor em álcool mínimo das bebidas alcoólicas não prosseguem uma finalidade de interesse geral susceptível de primar sobre as exigências de livre circulação das mercadorias, que faz parte das regras fundamentais da Comunidade.

O efeito prático de disposições desse tipo consiste essencialmente em conceder vantagens às bebidas alcoólicas de forte teor em álcool, afastando do mercado nacional produtos de outros Estados-membros que não correspondam a tal especificação.

Conclui-se, assim, que a exigência unilateral, imposta pela regulamentação de um Estado-membro, de um teor em álcool mínimo para a comercialização de bebidas alcoólicas constitui um obstáculo às trocas comerciais incompatível com as disposições do artigo 30.o do Tratado.

Não existe, portanto, fundamento válido para impedir que bebidas alcoólicas, legalmente produzidas e comercializadas em outros Estados-membros, sejam introduzidas em qualquer outro Estado-membro, sem que se possa opor ao escoamento desses produtos a proibição legal de comercialização de bebidas com teor em álcool inferior ao limite fixado pela regulamentação nacional.

15

Em consequência, deve responder-se à primeira questão que a noção de «medidas de efeito equivalente a restrições quantitativas à importação», constante do artigo 30o do Tratado, deve ser entendida no sentido de que a proibição estabelecida nessa disposição abrange também a fixação de um teor mínimo em álcool das bebidas alcoólicas destinadas ao consumo humano, efectuada pela legislação de um Estado-membro, quando se trate de bebidas alcoólicas legalmente produzidas e comercializadas em outro Estado-membro.

Quanto às despesas

16

As despesas efectuadas pelo Governo do Reino da Dinamarca, pelo Governo da República Federal da Alemanha e pela Comissão das Comunidades Europeias, que apresentaram observações ao Tribunal, não são reembolsáveis. Revestindo o processo, quanto às partes na causa principal, a natureza de incidente suscitado perante o órgão jurisdicional nacional, compete a este decidir quanto às despesas.

 

Pelos fundamentos expostos,

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA,

pronunciando-se sobre as questões submetidas pelo Hessisches Finanzgericht, por decisão de 28 de Abril de 1978, declara:

 

O conceito de «medidas de efeito equivalente às restrições quantitativas à importação», constante do artigo 30.o do Tratado CEE, deve ser entendido no sentido de que a proibição estabelecida nessa disposição abrange também a fixação de um teor mínimo em álcool das bebidas espirituosas destinadas ao consumo humano, efectuada pela legislação de um Estado-membro, quando se trate da importação de bebidas alcoólicas legalmente produzidas e comercializadas em outro Estado-membro.

 

Kutscher

Mertens de Wilmars

Mackenzie Stuart

Donner

Pescatore

Sørensen

O'Keeffe

Bosco,

Touffait

Proferido em audiência pública no Luxemburgo, em 20 de Fevereiro de 1979.

O secretário

A. Van Houtte

O presidente

H. Kutscher


( *1 ) Língua do processo: alemão.