ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Sétima Secção)

3 de setembro de 2015 ( *1 )

«Reenvio prejudicial — Aproximação das legislações — Produtos cosméticos — Proteção dos consumidores — Regulamento (CE) n.o 1223/2009 — Âmbito de aplicação — Lentes de contacto coloridas decorativas e não graduadas — Indicação na embalagem que designa o produto em causa como sendo um produto cosmético — Proteção dos consumidores»

No processo C‑321/14,

que tem por objeto um pedido de decisão prejudicial apresentado, nos termos do artigo 267.o TFUE, pelo Landgericht Krefeld (Alemanha), por decisões de 4 de junho e 4 de agosto de 2014, que deram entrada no Tribunal de Justiça, respetivamente, em 4 de julho e 11 de agosto de 2014, no processo

Colena AG

contra

Karnevalservice Bastian GmbH,

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Sétima Secção),

composto por: J.‑C. Bonichot, presidente de secção, A. Arabadjiev e C. Lycourgos (relator), juízes,

advogado‑geral: N. Jääskinen,

secretário: A. Calot Escobar,

vistos os autos,

vistas as observações apresentadas:

em representação da Karnevalservice Bastian GmbH, por C. Ballke, Rechtsanwalt,

em representação do Governo checo, por M. Smolek e S. Šindelková, na qualidade de agentes,

em representação do Governo francês, por F. Gloaguen e D. Colas, na qualidade de agentes,

em representação da Comissão Europeia, por G. Wilms e P. Mihaylova, na qualidade de agentes,

vista a decisão tomada, ouvido o advogado‑geral, de julgar a causa sem apresentação de conclusões,

profere o presente

Acórdão

1

O pedido de decisão prejudicial tem por objeto a interpretação do Regulamento (CE) n.o 1223/2009 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 30 de novembro de 2009, relativo aos produtos cosméticos (JO L 342, p. 59).

2

Este pedido foi apresentado no âmbito de um litígio que o opõe a Colena AG (a seguir «Colena») à Karnevalservice Bastian GmbH (a seguir «Karnevalservice»), a respeito da comercialização, por esta última, de lentes de contacto coloridas decorativas e não graduadas (a seguir «lentes em causa»).

Direito da União

3

O considerando 6 do Regulamento n.o 1223/2009 enuncia:

«O presente regulamento visa apenas os produtos cosméticos e não os medicamentos, os dispositivos médicos ou os produtos biocidas. A delimitação resulta nomeadamente da definição pormenorizada de produtos cosméticos, que se refere tanto às áreas de aplicação destes produtos como aos fins a que se destinam.»

4

Nos termos do considerando 7 deste regulamento:

«Para avaliar se um produto é um produto cosmético devem ter‑se em conta todas as suas características, e essa avaliação deve fazer‑se caso a caso. [...]»

5

O artigo 1.o do referido regulamento, intitulado «Âmbito e objetivo», prevê:

«O presente regulamento estabelece as normas que os produtos cosméticos disponíveis no mercado devem cumprir a fim de garantir o funcionamento do mercado interno e um elevado nível de proteção da saúde humana.»

6

O artigo 2.o, n.o 1, do mesmo regulamento, intitulado «Definições», dispõe:

«Para efeitos do presente regulamento, entende‑se por:

a)

‘Produto cosmético’, qualquer substância ou mistura destinada a ser posta em contacto com as partes externas do corpo humano (epiderme, sistemas piloso e capilar, unhas, lábios e órgãos genitais externos) ou com os dentes e as mucosas bucais, tendo em vista, exclusiva ou principalmente, limpá‑los, perfumá‑los, modificar‑lhes o aspeto, protegê‑los, mantê‑los em bom estado ou corrigir os odores corporais;

b)

‘Substância’, um elemento químico e os seus compostos, no estado natural ou obtidos por qualquer processo de fabrico, incluindo todos os aditivos necessários para preservar a sua estabilidade e todas as impurezas derivadas do processo utilizado, mas excluindo todos os solventes que possam ser separados sem afetar a estabilidade da substância nem alterar a sua composição;

c)

‘Mistura’, uma mistura ou solução composta por duas ou mais substâncias;

[...]»

7

Sob o título «Rotulagem», o artigo 19.o, n.o 1, do Regulamento n.o 1223/2009 prevê, em substância, que os produtos cosméticos só podem ser disponibilizados no mercado se o seu recipiente e a sua embalagem ostentarem em carateres indeléveis, facilmente legíveis e visíveis, uma série de informações, tais como, designadamente, o nome ou a firma e o endereço da pessoa responsável, o conteúdo nominal no momento do acondicionamento, a data até à qual o produto cosmético, armazenado em condições adequadas, continua a desempenhar a sua função inicial, as precauções especiais de utilização, o número de lote de fabrico ou a referência que permita identificar o produto cosmético, bem como a lista de ingredientes.

Litígio no processo principal e questões prejudiciais

8

A sociedade Karnevalservice comercializa, na Alemanha, as lentes em causa. Estes produtos não são comercializados para remediar qualquer deficiência visual, mas sim para modificar a aparência do utilizador, nomeadamente por ocasião de acontecimentos festivos. A embalagem das lentes em causa ostenta a seguinte informação: «Acessório cosmético para os olhos, sujeito à diretiva cosméticos».

9

Em 24 de outubro de 2013, a Colena submeteu ao Landgericht Krefeld (Tribunal Regional de Krefeld) um pedido de medidas provisórias destinado a proibir a Karnevalservice de comercializar as lentes em causa sem apor, na respetiva embalagem, determinadas menções impostas pelo artigo 19.o, n.o 1, do Regulamento n.o 1223/2009. Por decisões de 29 de outubro de 2013 e 11 de dezembro de 2013, esse órgão jurisdicional negou provimento a esse pedido, decidindo que as lentes em causa não podiam ser qualificadas de «produto cosmético», na aceção desse regulamento, e, por conseguinte, que este último não era aplicável.

10

A Colena interpôs recurso dessa decisão no Oberlandesgericht Düsseldorf (Tribunal Regional Superior de Düsseldorf). Por decisão de 9 de janeiro de 2014, esse órgão jurisdicional reformou a decisão proferida pelo Landgericht Krefeld e deferiu o pedido de medidas provisórias, declarando que, apesar do facto de as lentes em causa não poderem ser qualificadas de «produtos cosméticos» na aceção do Regulamento n.o 1223/2009, deviam, contudo, ser sujeitas às disposições desse regulamento, devido à indicação, que figura no seu rótulo, segundo a qual essas lentes constituem um «acessório cosmético para os olhos, sujeito à diretiva cosméticos», que dá a qualquer «consumidor médio, normalmente informado, atento e avisado», em conformidade com o direito alemão, a impressão de que se trata efetivamente de um produto cosmético na aceção do referido regulamento.

11

Em 30 de janeiro de 2014, a sociedade Karnevalservice deduziu oposição a essa decisão no órgão jurisdicional de reenvio, que foi chamado a decidir quanto ao mérito das medidas provisórias concedidas pelo Oberlandesgericht Düsseldorf.

12

No pedido de decisão prejudicial, o órgão jurisdicional de reenvio considera que a resposta à questão de saber se o produto, que não é um produto cosmético na aceção do Regulamento n.o 1223/2009, deve, contudo, cumprir as exigências deste último, uma vez que na sua embalagem figura uma indicação que o designa como sendo um produto cosmético «sujeito à diretiva cosméticos», é essencial para a solução do litígio que lhe foi submetido. A decisão proferida em sede de recurso pelo Oberlandesgericht Düsseldorf, que reforma a decisão contrária do órgão jurisdicional de reenvio, bem como a existência de decisões contraditórias proferidas pelo Landgericht Essen (Tribunal Regional de Essen) testemunham efetivamente dúvidas da jurisprudência nacional, no que diz respeito ao âmbito de aplicação do Regulamento n.o 1223/2009.

13

Além disso, o órgão jurisdicional de reenvio observa que, na Alemanha, existem decisões judiciais contraditórias quanto à questão de saber se lentes de contacto como as em causa no processo principal estão ou não abrangidas pelo âmbito de aplicação do Regulamento n.o 1223/2009. Considera que a resposta a esta questão é igualmente essencial para a decisão a proferir no processo que lhe foi submetido.

14

Nestas circunstâncias, o Landgericht Krefeld decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça as seguintes questões prejudiciais:

«1)

Deve o Regulamento […] n.o 1223/2009 ser interpretado no sentido de que um produto, que não é abrangido pelo referido regulamento, tem de preencher os requisitos nele estabelecidos, apenas porque na embalagem é indicado que se trata de um ‘acessório cosmético para os olhos, sujeito à diretiva sobre os cosméticos’?

2)

Deve o Regulamento […] n.o 1223/2009 ser interpretado no sentido de que as ‘lentes de contacto sem graduação [decorativas]’ estão abrangidas pelo âmbito de aplicação do referido regulamento?»

Quanto às questões prejudiciais

15

Com as suas questões, que há que examinar conjuntamente, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se o Regulamento n.o 1223/2009 deve ser interpretado no sentido de que as lentes em causa estão abrangidas pelo âmbito de aplicação deste regulamento porque preenchem os requisitos impostos para serem abrangidas por esse âmbito de aplicação, ou, não sendo assim, porque na sua embalagem figura a indicação «Acessório cosmético para os olhos, sujeito à diretiva cosméticos».

16

A fim de determinar se o produto está abrangido pelo âmbito de aplicação do Regulamento n.o 1223/2009, há que fazer referência ao artigo 1.o deste regulamento, que prevê que tem por objetivo estabelecer as normas que «os produtos cosméticos disponíveis no mercado» devem cumprir. Este artigo foi completado por uma definição do conceito de «produto cosmético», que consta do artigo 2.o, n.o 1, alínea a), do referido regulamento.

17

Decorre da leitura conjugada destas duas disposições que o Regulamento n.o 1223/2009 se aplica a todos os produtos que correspondem à definição que consta do artigo 2.o, n.o 1, alínea a), deste regulamento e unicamente a esses produtos. Com efeito, ao precisar que o referido regulamento visa instituir um quadro regulamentar a que estão sujeitos todos os produtos cosméticos, o seu artigo 1.o restringe o âmbito de aplicação do referido regulamento unicamente a esses produtos, sendo essa limitação a seguir precisada pela definição pormenorizada do conceito de «produto cosmético» contida no artigo 2.o

18

Esta conclusão é corroborada pelo considerando 6 do Regulamento n.o 1223/2009, que, embora diga especificamente respeito à distinção entre produtos cosméticos, por um lado, e medicamentos, dispositivos médicos e produtos biocidas, por outro, precisa que esse regulamento visa «apenas os produtos cosméticos».

19

Por conseguinte, há que examinar se as lentes em causa preenchem todos os critérios indicados na definição do conceito de «produto cosmético» constante do artigo 2.o, n.o 1, alínea a), do Regulamento n.o 1223/2009. Tal como resulta desta disposição, a referida definição assenta em três critérios cumulativos, ou seja, em primeiro lugar, a natureza do produto em causa (substância ou mistura de substâncias), em segundo lugar, a parte do corpo humano com a qual esse produto é destinado a ser posto em contacto e, em terceiro lugar, o objetivo prosseguido pela utilização do dito produto.

20

Quanto ao primeiro critério, relativo à natureza do produto em causa, há que salientar que o artigo 2.o, n.o 1, alínea b), do Regulamento n.o 1223/2009 define o conceito de «substância» como sendo «um elemento químico e os seus compostos, no estado natural ou obtidos por qualquer processo de fabrico, incluindo todos os aditivos necessários para preservar a sua estabilidade e todas as impurezas derivadas do processo utilizado, mas excluindo todos os solventes que possam ser separados sem afetar a estabilidade da substância nem alterar a sua composição». O artigo 2.o, n.o 1, alínea c), deste regulamento, por sua vez, prevê que se entende por «mistura», «uma mistura ou solução composta por duas ou mais substâncias». Ora, atendendo às características objetivas das lentes em causa que permitem qualificá‑las de «objetos», estas não podem ser consideradas uma «substância» ou uma «mistura» na aceção desta disposição.

21

No que diz respeito ao segundo critério, o artigo 2.o, n.o 1, alínea a), do Regulamento n.o 1223/2009 enumera, na definição de «produto cosmético», as partes do corpo humano com as quais esse produto é destinado a ser posto em contacto. Esta enumeração tem caráter exaustivo, como indica claramente a redação pormenorizada e precisa desta disposição assim como o facto de o legislador da União ter renunciado a acrescentar termos do tipo «como», «por exemplo», «nomeadamente», «etc.», os quais testemunhariam a natureza simplesmente exemplificativa da referida enumeração. Ora, as lentes em causa são aplicadas sobre a córnea do olho, que não é de modo nenhum mencionada nessa enumeração exaustiva e não figura em nenhuma outra disposição do Regulamento n.o 1223/2009. Daqui resulta que as lentes em causa não preenchem este segundo critério.

22

Quanto ao terceiro critério, que diz respeito ao objetivo prosseguido pela utilização do produto, há que salientar que, visto as lentes em causa terem por função modificar os aspeto da córnea do olho, sobre a qual são aplicadas, não têm por função exclusiva ou principalmente, limpar, perfumar, modificar o aspeto, proteger ou manter em bom estado todas as partes do corpo enumeradas no artigo 2.o, n.o 1, alínea a), do Regulamento n.o 1223/2009, nem corrigir os odores corporais. Portanto, este critério não está preenchido.

23

Com fundamento numa apreciação que, em conformidade com o considerando 7 do Regulamento n.o 1223/2009, tem em conta todas as características das lentes em causa, resulta que estas não preenchem nenhum dos três critérios cumulativos que deveriam satisfazer para corresponder à definição de «produto cosmético», referida no artigo 2.o, n.o 1, alínea a), deste regulamento. Assim, importa declarar que as lentes em causa não podem ser qualificadas de «produtos cosméticos», na aceção dessa definição, e, portanto, não poder estar abrangidas pelo âmbito de aplicação do referido regulamento.

24

Esta conclusão não pode ser posta em causa pelo facto de, na embalagem das lentes em causa, figurar a indicação de que se trata de um «acessório cosmético para os olhos, sujeito à diretiva cosméticos».

25

Com efeito, contrariamente à escolha efetuada pelo legislador da União para outros produtos, em especial os medicamentos, a definição do artigo 2.o, n.o 1, alínea a), do Regulamento n.o 1223/2009 não contém uma categoria de produtos cosméticos por «apresentação», que permita qualificar juridicamente um produto como sendo «produto cosmético» só porque é apresentado como tal.

26

Contudo, esta apreciação não prejudica a aplicação, se for caso disso, das normas que permitem às autoridades competentes verificar se a indicação, na embalagem das lentes em causa, de que se trata de um «acessório cosmético para os olhos, sujeito à diretiva cosméticos», não constitui uma prática comercial enganosa.

27

Tendo em conta todas as considerações precedentes, há que responder às questões submetidas que o Regulamento n.o 1223/2009 deve ser interpretado no sentido de que as lentes em causa não estão abrangidas pelo âmbito de aplicação deste regulamento, não obstante o facto de na sua embalagem figurar a indicação «Acessório cosmético para os olhos, sujeito à diretiva cosméticos».

Quanto às despesas

28

Revestindo o processo, quanto às partes na causa principal, a natureza de incidente suscitado perante o órgão jurisdicional de reenvio, compete a este decidir quanto às despesas. As despesas efetuadas pelas outras partes para a apresentação de observações ao Tribunal de Justiça não são reembolsáveis.

 

Pelos fundamentos expostos, o Tribunal de Justiça (Sétima Secção) declara:

 

O Regulamento (CE) n.o 1223/2009 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 30 de novembro de 2009, relativo aos produtos cosméticos, deve ser interpretado no sentido de que as lentes de contacto coloridas decorativas e não graduadas não estão abrangidas pelo âmbito de aplicação deste regulamento, não obstante o facto de na sua embalagem figurar a indicação «Acessório cosmético para os olhos, sujeito à diretiva cosméticos».

 

Assinaturas


( *1 ) Língua do processo: alemão.